Segundo Roberto de Sousa Castro, importante estudioso sobre distopias e escritor de ficção científica, as distopias são “a descrição de um lugar fora da história, em que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do controle social.” (2012, p. 12-13). Nessa perspectiva, é importante pensarmos a constituição das obras distópicas como veículos de transmissão de valores e reflexões sobre governos autoritários e movimentos políticos de profundo radicalismo, supremacismo e ressignificação de valores.
1984, autoria do escritor inglês George Orwell – que, na verdade nasceu na Índia, na época ainda colônia inglesa – compõe-se de um panorama crítico e irônico do que seria o poder alcançado por esses governos autoritários e os diferentes tipos e níveis de atuação e controle deles. É talvez, o mais conhecido romance distópico produzido. Com uma narrativa inteligentemente composta sob diversos paradoxos, construídos a partir da crítica aos regimes nazifascista e, principalmente, stalinista, Orwell nos mostra a subversão de um protagonista indeciso em meio a mudanças e manipulações constantes na linguagem, nas comunicações, no comportamento e vida privada das pessoas, sendo tudo isso gerado por um Estado de alta intervenção e que apresenta-se em constante estado de guerra como justificativa ao caráter emergencial e controlador em que todos os desenlaces sócio-políticos são desenvolvidos ao longo da história.
Outras obras, desde os clássicos Fahrenheit 451, Admirável Mundo Novo, O Conto da Aia, Nós, Laranja Mecânica, até os romances contemporâneos, como as sagas Jogos Vorazes e Divergente, perpassando o mundo do cinema, como o obscuro V de Vingança (2005) ou a trilogia de ficção científica Matrix; também apresentam um panorama de manipulação, autoritarismo de governos pós-revolucionários, extremistas e supremacistas, que alcançam uma uniformidade social pela violência ou imersão cultural dos sujeitos em um modo de vida que os leve para uma realidade suspensa de auto controle e do poder de escolha. Seja por pílulas, leituras ou vigilância ferrenha, os protagonistas dessas histórias compõem um quadro de autoconhecimento do que é exatamente viver sob uma realidade pressurizada numa redoma de vidro intransponível e de vigilância onipresente.
Em 1984, Winston Smith, o glorioso protagonista, se mostra um
funcionário do Ministério da Verdade e por contestar ordens maiores, se vê
traído e levado ao extremo da sua existência e questionamento ao ser torturado
e desafiado a persistir com sua “subversão” no Ministério do Amor. Os nomes
sugestivos e sarcásticos empregados por Orwel - Ministério da Verdade onde se distorce as notícias de jornal e o Ministério do Amor onde pessoas são torturadas - apenas denota o poder que a
linguagem e a construção dos indivíduos em um ambiente de banalidade da
violência e composição abrupta de uma realidade atroz, ilusória e maniqueísta
pode causar aos seres que dela e nela vivem.
Distopias,
em suma, são utopias negativas, composições de pensamentos pessimistas acerca
de uma ideia revolucionária e supremacista da sociedade, disposta a derrubar todos os trâmites
que compõem as estruturas de uma nação para compor ou remodelar formas extremas
de vivência e controle, sendo tais percepções atenuadas entre os sujeitos para
que não percebam a articulação do controle estatal, como em 1984, ou em outros casos, uma imersão absurda e enxergada como
natural e intransponível, como em Admirável
Mundo Novo ou Fahrenheit 451.
“Winston amava o grande irmão”, essa é frase que finaliza o romance de Orwell e
que muito articula-se a toda sua trajetória
enquanto protagonista, que se subverte e constrói novas estruturas mentais para pensar o seu redor, mas que é suprimido por um meio violento, físico e
psicologicamente construído. Forçar Winston a acreditar que dois mais dois é
cinco torna-se tão extremista e absurdo quanto deixá-lo sem comer, emagrecer,
se ver como um ser em decomposição pela própria atitude de pensar fora da
uniformidade governamental e consequentemente social.
A manipulação de imagens e as
constantes mudanças da chamada Nova Língua no romance de Orwell compõem o quadro do controle
político-social ao que concebemos ser uma sociedade eternamente vigiada e
controlada pelas nuances de uma figura una e onipresente: o grande irmão,
aquele que tudo pode, a personificação do controle extremado de todas
instâncias da sociedade que a política totalitarista é capaz de
alcançar. “O Estado é total”, assim afirmou veementemente Mussolini ao
acreditar, bem como Hitler, Stálin, e tantos outros, que a concepção de um
mundo uniforme e regrada sob leis inquestionáveis são a via mais confiável para
imergir a sociedade em um projeto de vida coletiva que não tolera
heterogeneidade, sublevações e flexibilidade de pensamento e articulação
social, rumo ao progresso.
Por isso, a importância de discutir de maneira múltipla o pensamento político, social e linguístico das obras do gênero distópico, que carregam em seu bojo reflexões de seu tempo e perspectivas de futuro, dotadas de pessimismo e historicismo de épocas conturbadas, principalmente do século XX, dito por Eric Hobsbawn como “a era dos extremos”, mas que muito compõem a aura do tempo presente, dotado de conflitos mundiais econômicos e belicosos tomados de discursos de ódio e extremistas em uma época que já nos valemos da sobrevivência de guerras mundiais e conflitos ideológicos. Esses processos quase nos levaram a destruição total, sendo por isso, questionado o caráter ético e íntegro dos sujeitos ao longo do tempo por filósofos e estudiosos da área das humanas. Refletir sobre isso é pensar as particularidades das distopias no mundo da literatura em conexão com um olhar sócio-histórico sobre o tema.
Para saber mais sobre o assunto, confira outros posts do blog :)
https://souhumanito.blogspot.com/2020/05/filmes-e-metaforas-para-instigar-sua.html
https://souhumanito.blogspot.com/2020/06/duas-series-distopicas-para-instigar.html
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: antissemitismo,
imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo –São Paulo, Companhia das
Letras, 2012.
ATWOOD, Margareth. O Conto da Aia. Tradução Ana Deiró. – Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner;
Heloísa Jahn; posfácios Eric Fromm, Bem Pimlott, Thomas Pynchon. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
PINTO, Manuel da
Costa. Prefácio. In: BRADBURY, Ray. Fahrenheit
451. Tradução Cid Knipel.2ª ed. – São Paulo: Globo, 2012.
ROLAND, Paul. A vida no Reich: entre o entusiasmo e o
medo, o dia a dia das famílias alemãs sob domínio nazista. Tradução Carlos
Eduardo Mattos; Samantha Nastacci, Davi Figueiredo de Sá. Coleção História Viva
– Rio de Janeiro: Ediouro, 2015.
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