FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2014.
As reconstruções de dizeres: sob o ombro de gigantes
Muitas foram as contribuições de teóricos, cientistas, filósofos e estudiosos da humanidade ao longo do tempo. E muitos se destacaram, enquanto outros foram esquecidos e silenciados durante um longo período e só então resgatados muito depois; às vezes, esquecidos pela perda de seus escritos, outras vezes, propositalmente, pela sociedade. Mikhail Bakhtin, Nietzsche, Albert Einstein, Newton, Stephen Hawking, Carl Sagan, Hannah Arendt, Hipátia, Marie Curie, Freud, Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste, Michel Pêcheux, entre tantos outros. Os últimos relacionados a Análise do discurso, como também Michel Foucault, autor de A ordem do discurso (1970). Utilizando as palavras de Newton, todos olharam o mundo a partir dos ombros de outro, se é permitida essa analogia, Foucault foi também levantado e motivado pelos estudos de sua época e por estudos anteriores, como por exemplo, pelas noções de poder de Nietzsche e por áreas como a História e a Psicologia.
Michel Foucault foi considerado por muitos, um pervertido, por outros um intelectual, um novo Kant, ora considerado mais historiador que filósofo, contudo, o que se sabe é que entrou à fundo na história de diversos assuntos e certos discursos, tabus como a sexualidade, a loucura, a política e, por essa razão, algumas pessoas acreditam que sua bibliografia e seus estudos ficaram presos somente a essas pesquisas. Embora, realmente tenha pesquisado sobre esses assuntos “cabeludos”, pode-se colocar em evidência uma palavra que levou a todas as outras: poder. E como dito na curta obra Foucault em 90 minutos de Paul Strathern, essa ideia gerou todos as outras buscas, advindo de Nietzsche, já citado anteriormente.
Toda sua bibliografia buscou entender como essa palavra significou em outras épocas, ao que e a quem estava relacionada. Foucault fez uso especial de documentos de bibliotecas e museus, ambientes físicos, para que alcançasse seus objetivos. Essa pesquisa genealógica, assim, denomina diversas vezes, o levou a compreender e teorizar que o poder e o saber estão intrinsecamente conectados e que, dependem inteiramente de cada época. É lógico perceber que como outros teóricos, até o próprio Kant, Michel relativizou nossa ideia de realidade (vide Einstein, o percursor). Explicando melhor, nossa cultura e nossas vivências modificam nossa perspectiva. A realidade é relativa exatamente, porque não há verdade absoluta, mesmo que nós sempre corramos e a procuremos.
A ordem do discurso, escrito e pronunciado no Collège de France, uma renomada universidade da França em 1970, é o resumo de uma de suas pesquisas, relacionada ao poder e tendo como principal foco o discurso, reflexo do poder, sendo assim, limitado, controlado, selecionado pelas instituições e pela sociedade por certos procedimentos. Por que? Por ter um caráter material, mas ao mesmo tempo fugidio, incontrolável, capaz de oferecer poderes e um lugar que apresente um campo cheio de possibilidades e de batalhas. Não sendo, portanto, transparente, um desejo de todos que fosse e a ingenuidade de muitos ao pensar que é, quando na verdade, nossa fala vêm de outros. Nossa fala é resultado da história (FOUCAULT, 2014).
Aqui abre-se para um paralelo com o livro Análise de discurso de Eni P. Orlandi, brasileira referência da área no Brasil, em que é citado diversas vezes o termo interdiscurso/memória que se refere a todas as falas ditas ao longo do tempo, refletida nos nossos próprios dizeres, agora (intradiscurso). Sabendo que Orlandi foi motivada pelos estudos de franceses, fica claro o uso e sentido de diversos termos, como: sociedade discursiva retirada de sociedade do discurso em Foucault; sujeito adâmico para a autora e sujeito fundante para o autor.
E é lógico que se pode fazer outras comparações, inclusive, com autores essenciais para a Análise do discurso: Bahktin escreveu sobre dialogismo, o texto que recebe de outros (dialoga com outros), Pêcheux (“inspirado” pelo autor de A ordem) de onde Orlandi retirou formação discursiva (apud H. Nagamine Brandão, 2006). E, por fim, Courtine: “No interdiscurso fala uma voz sem nome” (apud Orlandi, 2009).
Foi provado que todos esses teóricos se relacionam entre si e que, a partir da teoria dos outros, escreveram suas pesquisas. Todos se relacionam entre si, desenvolvendo releituras e reescritas, respostas e novas análises. Desse modo, pode-se afirmar que a memória, o interdiscurso estão presentes em seus dizeres, porém não de forma inconsciente ou ingênua, mas de forma consciente e transformadora.
Michel Foucault não ficou imune a leitura e pesquisas anteriores; nem pelas vozes anteriores, tal como indica o início de A ordem do discurso: “Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo […]” (FOUCAULT, p.6, 2014). Após isso, dando como exemplo ele mesmo, desejava não ter de começar e elege, assim, o desejo de todos, não ter de se arriscar nessa ordem do discurso, em contra partida, a imposição das instituições (religiosas e não religiosas: igrejas, universidades, academias de artes, ciências e a própria família) insinuam e nos convidam a entrar, afinal dizem, “o poder só pode ser dado e advir de nós”. O autor afirma que, para controlar tal poder, as instituições e a própria sociedade dispõem de certos procedimentos que delimitam, interditam, escolhem os discursos e quem os irá proferir.
A obra é dividida em oito tópicos, todos eles com ramificações, separados por astericos em certas edições ou por pontos em outras (na edição utilizada, a última opção). O primeiro tópico, como já tratado, traz o embate entre o desejo individual e a imposição das instituições. O segundo revela três procedimentos externos de controle do discurso, chamados de sistema de exclusão: a interdição, não é dado o direito de dizer tudo e qualquer um não pode falar qualquer coisa; a separação e a rejeição (razão e loucura) e a oposição entre verdadeiro e falso, a vontade de saber e de uma verdade, a principal busca de resposta pelas ciências.
Já o terceiro apresenta os procedimentos internos de controle exercidos dentro dos próprios discursos; esse sistema tenta submeter sua "outra dimensão […]: a do acontecimento e acaso". São eles: o comentário, o autor e a disciplina, princípios que funcionam classificando, ordenando e distribuindo o jogo do já-dito, do resultado cultural e social sobre um autor, visto como entidade não-individual e o dizer que é verdade, mas não é considerado verdadeiro dentro de disciplinas e conhecimentos, pois não segue os métodos de análise usadas em certo período.
O quarto tópico trata dos procedimentos que determinam as condições de funcionamento do discurso, portanto a escolha de quem deve entrar na ordem do discurso, tornando-o uma zona proibida, permitida apenas aos escolhidos por rituais e sociedades de discurso, grupos fechados, proibidos.
Quanto ao quinto e sexto tópico são apresentadas formas de interpretação da realidade presentes no pensamento filosófico, que mantiveram e reforçaram as ideias de criação e origem, além disso, não só são apresentados, como são mostradas formas de analisar essas interpretações e de analisar os procedimentos de controle, questionando essas ideias e compreendendo essas condições e seus efeitos. O filósofo revela então princípios reguladores para a análise do discurso: a noção de acontecimento, a de série, a de regularidade, a de condição e possibilidade. Princípios que derrubam por terra as noções de originalidade, a unidade, na qual o texto estaria desconectado de outros e o “tesouro indefinido das significações ocultas”.
No penúltimo tópico, Foucault refere-se à importância de estudar a constituição e estrutura de disciplinas e conhecimentos, através de outros documentos e discursos diversificados. Ele faz uma hipótese, provavelmente, já pensada e a qual seria feita no futuro: estudar a sexualidade, logo, propõem que seria necessário estudar outras áreas, áreas que tratam do tema. Ressalta ainda que, a análise não deve desvendar uma universalidade de um sentido, ela deve mostrar o jogo de sentidos, de rarefação, destituindo o poder monárquico do significante.
Para finalizar seu pronunciamento, ele dar enfim nome à voz de Hyppolite, antigo professor da Collège de France e, que, por ocasião de sua morte, o escritor de A ordem é convidado a ocupar sua vaga, dessa forma, escreve o discurso aqui analisado. Michel Foucault explora a contribuição do antigo professor da universidade, estudioso de Hegel. Mais uma vez, é posta a fundamentalidade de vozes anteriores à nossa. Damos novos significados a essas vozes, nos conectamos, produzimos história, é tal qual uma rede virtual existente entre nós; tal qual o inconsciente coletivo teorizado por Carl Jung.
Daí a relevância das pesquisas de Michel Foucault que esmiuçou o poder, até chegar na sua microfísica. Muitas vezes essa análise parece óbvia para o leitor, contudo é engano, foi preciso muitos “ombros”, para que finalmente fosse possível vislumbrar esses sistemas, aparentemente aleatórios, no entanto, passíveis de análise. Pode não ter sido o primeiro estudo, mas, tornou-se o que mais chegou próximo de compreender as bases da sociedade moderna, um falso paraíso, livre e aberta para os discursos, entretanto, fechada e repleta de exclusões, como as caracterizadas.
O valor do presente estudo, estar em não ter sido o primeiro, afinal, não existe um texto original ou adâmico e, sim, em ter tornado possível todos que viriam depois. Mesmo sendo criticado por muitos, ninguém poderá dizer que o filósofo não é essencial para a história da filosofia, para a própria História e para a visão de como o ser humano enxerga a si mesmo e aos outros, como sociedade.
Referência bibliográfica
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. In: Introdução à análise do discurso. 2009.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2014.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. In: Análise de discurso: princípios e procedimentos. 2009.
STRATHERN, Paul. Foucault em 90 minutos. Zahar, 2003.
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