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A Rainha do Ignoto (1899) de Emília Freitas: Redescobrindo Uma Obra Esquecida da Literatura Brasileira.

 

Lançado no ano de 1899 em uma tipografia fortalezense, o romance A Rainha do Ignoto trazia em seu enredo temas e personagens não muito comuns para a tradição literária da época. Para compreendermos o complexo processo de “memoricídio” pelo qual essa obra passou, retrocederemos até a metade do século XIX para conhecer um pouco de sua autora.

Emília Freitas era cearense, nascida em 1855, na região de Jaguaruana, mas na época pertencente a Aracati. Desde a infância, Emília entrou em contato com livros e rodas de conversa em sua casa, que a aproximavam do mundo intelectual. Com a morte do pai aos quatorze anos de idade, sua família acabou tendo que se mudar para a capital, Fortaleza, afim de recomeçar uma nova vida diante das dificuldades financeiras e o baque emocional do luto. É na capital cearense que Emília se forma no Curso Normal, voltado a formação de professoras primárias da época, como também se dedicou aos estudos da Língua Inglesa e Francesa.

Além de ficcionista, Emília se destacou como poeta. Com o pungente crescimento de Fortaleza nas três últimas décadas do século XIX geradas, principalmente, pela crise da estiagem de 1877, a cidade passou a receber uma grande onda migratória vinda dos sertões e se tornou um celeiro não só de produção econômica e sede política da província, como também um centro intelectual, diante de inúmeras agremiações e associações de leitura, imprensa e filosofia, além da fundação de instituições como a Academia Cearense de Letras na década de 1890.

Emília passa a se destacar nesse meio, participando de grupos como a Sociedade das Cearenses Libertadoras de caráter abolicionista, sendo convidada até mesmo para ser a oradora da cerimônia de abertura do grupo. Ela também publicou suas produções poéticas em jornais como O Lírio, O Cearense, O Estado do Ceará e O Libertador. Com a campanha abolicionista da época se intensificando cada vez mais, muitas dessas agremiações apoiaram o movimento, tendo inclusive diversos poetas se engajado artisticamente em prol do fim da escravização. Poetas cearenses como Antônio Bezerra e Justiniano de Serpa foram reconhecidos como condoreiros, poetas abolicionistas. Emília, pelo seu engajamento, também recebeu uma alcunha: “a poetisa dos escravos.”.

Por conta de mais uma seca que atinge o Ceará entre 1889 e 1890, além da morte da mãe, Emília e seu irmão Afonso Américo decidem embarcar para a capital do Amazonas, Manaus, em 1892. Já vivendo um Brasil republicano, Emília chega à cidade amazonense que assim como Fortaleza, estava em constante processo de modernização por conta da exploração econômica da borracha. Em Manaus, Emília passa a lecionar no Instituto Benjamin Constant e entra em contato com as obras espíritas de Allan Kardec. É lá, “às margens do Rio Amazonas” onde Emília compõe sua Magnum Opus, A Rainha do Ignoto. No ano seguinte, em 1900, ela se casa com Arthunio Vieira e juntos retornam a Fortaleza no mesmo ano, depois seguem para o Pará em 1902. Em toda essa jornada, o casal se dedica a propagar a religião espírita pelo Brasil, o que era uma grande novidade para a época, contribuindo com diversos jornais sobre a temática. Nesse período, Emília Freitas também passa a ter uma produção literária cada vez menor, já que se responsabiliza pela editoração de diversos jornais aos quais estava envolvida com o marido. Em 1908, nossa autora vem a falecer por conta de malária.

Além d’A Rainha do Ignoto, Emília Freitas também publicou um livro de poemas intitulado Canções do Lar, de caráter romântico, abolicionista e autobiográfico; um outro romance, O Renegado, nunca encontrado, bem como poemas esparsos em jornais, duas crônicas registradas em periódicos e um conto. Sua vida, assim como sua obra, acabou esquecida pela historiografia literária brasileira, apesar das virtudes e pioneirismos que seu romance e sua postura enquanto intelectual e abolicionista alcançaram

O enredo d’A Rainha do Ignoto gira em torno de duas figuras principais: Edmundo, um jovem acostumado ao frenesi da urbe e bacharel, e Diana, uma moça misteriosa que em poucos capítulos reconhecemos ser a enigmática Rainha do Ignoto. Ignoto quer dizer desconhecido e seguindo o fio do mistério, as descobertas da narrativa não são entregues ao leitor de uma vez só. As primeiras cem páginas nos levam a uma trilha de diversas pistas fazendo com o que a história ganhe ares de ficção policial. Isso ocorre pois logo no primeiro capítulo, Edmundo, em visita a pequena cidade de Passagem das Pedras no interior do Ceará, conversa sobre os mistérios do pequeno vilarejo e, ao se vê sozinho, enxerga uma incrível visão pairando nas águas do Rio Jaguaribe: uma moça de roupas claras e leves flutua em um barco e canta uma tristonha canção em francês. A imagem impacta Edmundo e ele, o jovem moço que veio visitar as terras da família na região, embarca em uma jornada para desvendar os mistérios daquela criatura que tanto chamou sua atenção e que, segundo os moradores do lugar, já apareceu outras vezes. Alguns a chamam de fada, outras de bruxa, chegando a afirmarem que ela tem um pacto com o Satanás. Esse discurso já não é estranho para quem estuda um pouco de História.

Edmundo aos poucos descobre que aquela misteriosa moça, na verdade, é a Rainha do Ignoto, líder de um grupo de outras mulheres habitantes de uma isolada ilha na costa da província cearense e escondida por uma densa névoa, sendo chamada de Ilha do Nevoeiro. Essas mulheres chamadas de paladinas, habitam e governam a ilha, assumindo as mais diversas funções e profissões: engenheiras, professoras, maquinistas, médicas, etc. A vivência conjunta das paladinas é permeada pelas viagens que elas fazem pelo litoral brasileiro, salvando pessoas, especialmente outras mulheres, de situações de injustiça, abuso e impunidade. Essas pessoas recebem acolhimento na Ilha e passam a integrar o grupo das paladinas do Nevoeiro. Nenhum marujo ou navegante consegue alcançar a ilha, seja pela densa névoa, seja pelas suas guardiãs, que hipnotizam qualquer invasor. Elas também usam a hipnose para encantar pessoas e assim, salvar a quem desejam passando despercebidas.

A imagem da ilha para a literatura do final do século XIX é muito representativa, pois incorpora a atmosfera da corrida imperialista vivida pelas potências europeias da época: lugares desconhecidos e misteriosos eram o foco de muitas dessas nações, que ansiavam dominar cada vez mais territórios. Ademais, a ilha já foi símbolo de muitas culturas antigas, como a asteca e a celta. Outros romances posteriores ao de Emília Freitas, como As Brumas de Avalon de Marion Zimmer Bradley e Terra de Mulheres de Charlotte Perkins Gilman também exploram temas semelhantes, um grupo de mulheres vivendo unidas e ilhadas em sua própria vivência.

Além de Edmundo e Diana, que ocupam os lugares de protagonistas, também nos deparamos no romance com sujeitos como Carlotinha, uma jovem e sentimental moça, que sonha em encontrar um grande amor e acaba por se apaixonar por Edmundo. Também conhecemos Virgínia, uma moça enferma e inconformada com a situação de desigualdade que vive diante de sua condição subalterna enquanto mulher sem mais privilégios de classe que um dia teve. Amargurada por um amor não consumado, Virgínia é uma das frequentes figuras desiludidas e tristes que encontramos no romance, fazendo com que a narrativa ganhe um tom romântico e melancólico. Por hora, não comentarei mais sobre o enredo em si. Quero deixar vocês curiosos.

A obra aborda sobre inúmeras temáticas, desde relacionamentos abusivos e relações amorosas até a emancipação feminina e o mal estar da modernidade que os personagens vivem. Mesmo lançado durante os primeiros anos da República nacional, a história é ambientada no Brasil Império. Grande é a diferença ideológica que encontramos entre as personagens. As paladinas, em grande parte se caracterizam como republicanas, abolicionistas e espíritas – tal como Emília Freitas – e enfrentam um sistema monárquico calcado no escravismo e no conservadorismo católico.

Por todos esses aspectos, A Rainha do Ignoto é considerado o primeiro romance de literatura fantástica brasileiro, dado a aura de mistério e situações inexplicáveis racionalmente, como o nevoeiro que envolve a ilha, além de também ser reconhecido como pioneiro da ficção científica no país, diante do uso de técnicas até hoje pesquisadas por cientistas, como a hipnose. A obra, que se caracteriza como utópica, também assume uma postura inédita para a época ao tentar reproduzir a fala das personagens com seus vícios e características da oralidade, algo que se popularizaria apenas com o Modernismo no século XX.

Mesmo com o ineditismo de sua criação, o romance de Emília Freitas foi recebido com poucas e mornas críticas, algumas delas demonstrando certa empolgação a linguagem do fantástico, outras não assumindo tal entusiasmo. Uma crítica ainda chega a aconselhar a própria autora a retornar para a produção poética pela qual se fez conhecida. Uma imagem recorrente e estereotipada da mulher enquanto poeta sentimental e romântica. Sendo lançado na periferia do país, longe do eixo Rio-São Paulo, além de ter sido escrito por uma mulher em um ambiente intelectual profundamente patriarcal e possuir uma abordagem duvidosa em uma época onde a crítica louvava o Realismo na literatura, o romance foi olvidado da historiografia literária do Brasil, tendo ficado cerca de cinquenta anos sem críticas ou discussões profundas sobre ele.

Nos anos 1950, o estudioso Abelardo Montenegro escreveu uma crítica sobre o romance. Contudo, o caráter negativo da crítica não contribuiu muito e a grande obra de Emília Freitas ficaria resguardada ao esquecimento por quase trinta anos, quando em 1980, Otacílio Colares organizou uma nova edição d’A Rainha do Ignoto, além de ter incluído estudos sobre a autora em sua coletânea Lembrados e Esquecidos, título sugestivo. Contudo, Colares fez algumas mudanças no romance, omitindo e realocando trechos.

A obra voltaria aos holofotes apenas em 2003 com a Editora Mulheres, organização de Zahidé Muzart e Constância Lima Duarte. A edição, talvez a mais conhecida, foi resultado de um trabalho de edição feito pela professora Constância, unindo a primeira e a segunda edição, já que a de 1899 foi encontrada incompleta, lamentavelmente faltando onze capítulos.

Desde a década de 1980, estudos sobre Emília Freitas e sua obra se tornaram cada vez mais recorrentes, mas sem uma grande atenção das editoras. Dentre as pesquisas, a tese doutoral da professora Alcilene Cavalcante de Oliveira é um dos grandes destaques, visto que ela traça um estudo biográfico da vida de Emília e ainda compila uma série de poemas da autora.

Atualmente, Emília Freitas passa por um processo de revitalização da sua obra cada vez mais acelerado. Editoras como a Wish e 106 lançaram nos últimos dois anos edições d’A Rainha do Ignoto apostando em uma literatura não canônica e que possa abranger um público novo para o mercado editorial brasileiro. Emília Freitas faz parte de um conjunto de autoras que foram vítimas do que Constância Lima Duarte chama de “memoricídio”, a morte da memória, esquecidas pela tradição literária brasileira, que encara o termo literatura nacional, como algo voltado para o eixo Rio-São Paulo. Tudo fora desse eixo geralmente recebe as mais diversas nominações: literatura regional, indianista, periférica, marginal. Todas categorias que sim, caracterizam diversas formas de criação literária, mas que também transmitem uma ideia de que estão fora desse parâmetro “nacional”, resvalam valor em outras temáticas e lugares específicos.

Porque Machado de Assim seria Literatura Nacional e Rachel de Queiroz Literatura Regional, visto que Machado de Assis, assim como Rachel constituem narrativas voltadas a lugares em que viveram? Não, o drama de Dom Casmurro não é mais universal do que o de Maria da Glória em As Três Marias ou de nossa Rainha do Ignoto. São conceitos curiosamente válidos, mas que resguardam muito mais do que meras características ficcionais. Elas representam espaços de poder construídos em caráter histórico, político e social.

O processo de revitalização de obras como essa é fundamental. Não apenas Emília Freitas, mas também Maria Firmina dos Reis, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Clotilde e muitas outras assumem um lugar de pioneirismo e coragem do que foram e deixaram de marca no mundo. Emília Freitas hoje é lida em clubes de leitura, grupos de estudos que enxergam nela inúmeros valores reconhecidos na contemporaneidade que vivemos: as relações de gênero, a literatura de autoria feminina e produzida fora da região sudeste, a criação literária de caráter especulativo, que vem ganhando cada vez mais destaque no cenário nacional. Assim, é super importante pensarmos o que consumimos de literatura. Somos realmente leitores e leitoras abertos a novas criações ou lemos apenas o que nos dizem para ler? Qual o valor de um cânone, de algo considerado clássico? Será que A Rainha do Ignoto é uma literatura menor que um Dom Casmurro? Aliás, quem um dia pode ter dito isso? Pode parecer questionamentos absurdos, mas eles implicitamente pairam nas nossas mentes leitoras e sim, talvez sejamos vítimas e algozes desse processo.

Por isso, quando ver uma moça pairando sobre as águas de um rio, não hesite. Vá atrás de saber quem ela é, quem foi e quem poderia ter sido. Ela pode ter muito a te revelar dentro do ignoto do seu ser.

Retificação (01/05/2020): Pesquisando mais sobre o romance, vi que existe produções anteriores a Rainha do Ignoto que também podem ter características consideradas insólitas. Isso exige uma pesquisa mais acurada e que podemos discutir sobre posteriormente. Portanto, a questão do pioneirismo de Emilia Freitas tanto na fantasia, quanto na ficção científica pode ser revisto e analisado. Sendo verídico ou não, isso não tira as qualidades dessa grande obra, mas que podem nos manter atentos para o universo da literatura especulativa no Brasil, que só agora no século XXI vem recebendo cada vez mais atenção.

SE QUISER SABER MAIS, TÁ AÍ UMAS LEITURAS MASSA PRA VC!

CASTRO, Carla. Emília Freitas. In: CASTRO, Carla. Resquícios de Memória: Dicionário Biobibliográfico de Escritoras e Ilustres Cearenses do Século Dezenove. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019.

DUARTE, Constância Lima. Feminismo e Literatura no Brasil In: Estudos Avançados. vol.17, no.49. São Paulo Set. /Dec. 2003.

CANDIDO, Antônio. Literatura e vida social. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2019, p. 27-50.

KETTERER, Valérie. Mulheres de Letras no Ceará (1880—1925): Dos Escritos à cena pública. In: Revista de Letras. Vol. 18, nª 02, 1996.

MARQUES, Rodrigo. Literatura cearense: outra história. Fortaleza: Dummar, 2018.

MEIRELES, Alexander. O fantástico ignoto de uma rainha. In: FREITAS, Emília. A Rainha do Ignoto. São Caetano do Sul: Wish, 2020. 

OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de. Uma escritora na periferia do Império: vida e obra de Emília Freitas (1855-1908). Tese de Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2019.

Comentários

  1. Análise e apresentação muito profunda (ainda mais com esse chamamento/convite ao final). Muito pertinente. Adorei!

    Procurem conhecer e ler obras de autoras que sofreram com esse "memorícidio".
    Como graduada em Letras Português, é triste perceber o quanto conceitos e generalizações têm encaixotado escritoras e escritores, negando as particularidades de suas estéticas e de suas produções.

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