Pular para o conteúdo principal

Um fato histórico sob outros pontos de vistas: resenha de "Memorial do Convento" de José Saramago


(Fotografia de Thalya Amancio, 2020. Edição da Bertrand Brasil, 2008)


 Memorial do Convento (1982) do autor português José Saramago, é um romance histórico que constrói sua narrativa em torno de um fato histórico, mas como outros do mesmo gênero literário, decide recontar certo momento e contexto, utilizando de certos artifícios: a perspectiva daqueles envolvidos nesse fato, suas vidas, suas histórias; a história dessas pessoas praticamente esquecidas. Perspectivas essas, ignoradas ou negligenciadas nos documentos reais, pois o foco ficaria/ficou sob os reis, rainhas e nobres.


Nesse caso, a obra se volta para o século XVIII e o relato dos desejos, medos, dificuldades e problemas enfrentados por aqueles e aquelas que diretamente ou indiretamente tiveram suas vidas mudadas, por conta de uma promessa do rei D. João V - a construção do convento de Mafra - quando sua esposa, D. Maria Ana não gerava herdeiros.


"Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade (...)" (Página 14).


Muitos trabalhadores, pedreiros, construtores, boiadeiros, mestres de obras e pessoas no geral envolvidas nessa construção, se machucaram gravemente, se separaram de suas famílias ou ainda perderam suas vidas no processo. Só para citar exemplos.


"Vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus (...) tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende (...)" (Página 233).


Baltasar Sete-Sóis e Blimunda estão entre estes que de alguma forma tiveram suas vidas modificadas e olha que já eram diferentes: ele maneta, tendo perdido sua mão esquerda em batalha, ela - perdeu a mãe, bruxa, na fogueira - que enxerga o interior das coisas, dos animais e das pessoas.

Enfatizamos que a narrativa não está inteiramente atrelada ao simples relato da construção, como também se voltará a vida comum desses dois personagens e o amor compartilhados por eles - denominados pelo Padre Bartolomeu, o Voador - Sete-Sóis e Sete-Luas.
Além disso, teremos diálogos filosóficos e existenciais entre diversos personagens, palco para o desenrolar da história. Principalmente conversas entre o casal que são de fazer a leitora ou leitor parar, reler e repensar.


"A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez (...)" (Página 322).


E ainda que alguns personagens surjam rapidamente, se apresentam complexos e profundos ao serem descritos ou observados a partir de seus pensamentos e de suas conversas analisadas pelo narrador, um homem que soube da história e compara com o futuro, revelando seu tempo (em alguns momentos podemos pensar se não seria o próprio escritor).

Assim, acompanharemos Baltasar, Blimunda, o Padre que deseja voar e ajudado pelos dois primeiros, o músico Scarlatti, entre outros personagens cativantes, com vidas que pulsam de realidade e profundidade, tornando difícil se despedir deles.



(Imagem da página inicial do site com mais informações sobre o convento, sua história e o Palácio de Mafra:   http://www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/conventomenu/ContentList.aspx )


Se a linguagem de Saramago parece desafiadora de início, ao nos adaptarmos - com sua tentativa de se aproximar da oralidade e de textos antigos, do barroco - imergimos e podemos nos apaixonar ou nos encantar. E posso afirmar, eu me encantei.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Rainha do Ignoto (1899) de Emília Freitas: Redescobrindo Uma Obra Esquecida da Literatura Brasileira.

  Lançado no ano de 1899 em uma tipografia fortalezense, o romance A Rainha do Ignoto trazia em seu enredo temas e personagens não muito comuns para a tradição literária da época. Para compreendermos o complexo processo de “memoricídio” pelo qual essa obra passou, retrocederemos até a metade do século XIX para conhecer um pouco de sua autora. Emília Freitas era cearense, nascida em 1855, na região de Jaguaruana, mas na época pertencente a Aracati. Desde a infância, Emília entrou em contato com livros e rodas de conversa em sua casa, que a aproximavam do mundo intelectual. Com a morte do pai aos quatorze anos de idade, sua família acabou tendo que se mudar para a capital, Fortaleza, afim de recomeçar uma nova vida diante das dificuldades financeiras e o baque emocional do luto. É na capital cearense que Emília se forma no Curso Normal, voltado a formação de professoras primárias da época, como também se dedicou aos estudos da Língua Inglesa e Francesa. Além de ficcionista, Emília se...

O poder e o discurso: análise de "A Ordem do Discurso" de Michel Foucault

  FOUCAULT, Michel . A ordem do discurso :  aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 . São Paulo: Loyola, 2014.   As reconstruções de dizeres: sob o ombro de gigantes   Muitas foram as contribuições de teóricos, cientistas, filósofos e estudiosos da humanidade ao longo do tempo. E muitos se destacaram, enquanto outros foram esquecidos e silenciados durante um longo período e só então resgatados muito depois; às vezes, esquecidos pela perda de seus escritos, outras vezes, propositalmente, pela sociedade. Mikhail Bakhtin, Nietzsche, Albert Einstein, Newton, Stephen Hawking, Carl Sagan, Hannah Arendt, Hipátia, Marie Curie, Freud, Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste, Michel Pêcheux, entre tantos outros. Os últimos relacionados a Análise do discurso, como também Michel Foucault, autor de A ordem do discurso (1970) . Utilizando as palavras de Newton, todos olharam o mundo a partir dos ombros de outro, se é permitida essa analogia, F...

O Mundo de Ponta-Cabeça, de Christopher Hill

HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Publicada primeiramente no ano de 1972 na Inglaterra, a obra O Mundo de Ponta-Cabeça ( The World Turned Upside Down ) foi escrita por Chistopher Hill a partir de percepções do autor dotadas de preceitos marxistas e da nouvelle histoire. John Edward Christopher Hill nasceu em 1912 no condado de Yorkshire na Inglaterra. Afeiçoado ao socialismo, ele viveu por pouco tempo na União Soviética durante o ano de 1935 onde pesquisou sobre a vida cotidiana. Foi membro do Partido Comunista Inglês, juntamente com Edward P. Thompson e Eric Hobsbawn com quem tinham desde 1940 um grupo de outros historiadores filiados ao Partido, muito por conta do periódico de Hill sobre a Revolução de 1640. Contudo, mediante divergências sobre as manobras políticas e militares da União Soviética, ele se desliga do Partido em 19...