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Pelas Veredas da Fantasia: Um Breve Panorama da Antiguidade ao Século XIX.

 

Já dizia Carl Sagan na famosa série Cosmos que “para achar a verdade, precisamos tanto de imaginação, quanto de ceticismo.” Essa percepção de dúvida e contemplação pode ter sido a primeira forma de abstração que os seres humanos adquiriram no Paleolítico Superior (50.000 a 10.000 a.C.) e que possibilitou que crenças em planos e seres transcendentais tenham criado um imaginário sobrenatural entre os humanos. As famosas perguntas “De onde venho?”, “Para onde vamos?”, “O que é o céu?”, “O que é a Terra?”, “O que é a vida?” se tornaram não apenas exercícios mentais na contemplação existencial do indivíduo em si, mas também construiu redes de socialização e poder.

 Na obra O horror sobrenatural na literatura (1927), H. P. Lovecraft cria uma linha cronológica da literatura fantástica. Para o autor, a ideia do fantástico está interligada à literatura desde que o homem adquiriu a habilidade de construir redes de sociabilidade e comunicar-se, seja por gestos, palavras ou grunhidos. Antes da escrita, as histórias que eram contadas nos primórdios eram traçadas de elementos que representavam o sobrenatural. Estas histórias foram, ao longo do tempo, transformadas em baladas e lendas. Quando surgiu a escrita, essas lendas cristalizaram-se em crônicas e escritos sagrados. Para Lovecraft, essas histórias tiveram início em rituais religiosos que floresceram através dos tempos e chegaram ao seu ápice no Egito e nas nações semitas (CARMO, 2015, p. 01).

Lovecraft ainda afirma que as fantasias e mitos já no período medieval criaram um clima ideal para a criação de relatos e contos sobre o insólito. As grandes florestas europeias, escuras e geladas, além de castelos sombrios, a religiosidade cristã e crenças em seres imaginários resultantes de uma compreensão mesclada de diversos povos que habitavam as terras do continente, formavam um cenário propício para a criação de contos mitológicos e mergulhados na fantasia. A Igreja condenava as atitudes consideradas heréticas advindas de outras práticas religiosas remanescentes dos povos considerados bárbaros e iniciara a caça às bruxas. Nessa época, existia a compreensão de que bruxos e especialmente bruxas possuíam uma ligação pactual com Satanás

 

Eles selavam o acordo copulando com o Diabo. Reuniam-se em sabás regulares, os quais envolviam canibalismo, orgias sexuais e paródias blasfemas dos cultos cristãos. Os bruxos possuíam ‘familiares’ animais, desfrutavam do poder de voar e às vezes da capacidade de mudar de forma. Recebiam o poder de realizar o mal. Faziam parte de uma conspiração satânica de âmbito mundial, visando minar o cristianismo. (RICHARDS, 1993, p. 82).

Isso contribuiu ainda mais para que as histórias tivessem grande caráter sobrenatural, mesclando elementos mitológicos e religiosos. Seres como vampiros, demônios, bruxas, dragões e monstros imaginários faziam parte das histórias cantadas pelos menestréis e relatadas pelos contadores de lendas.  Esses relatos contribuíram para que os velhos mitos adquirissem formas literárias (LOVECRAFT, 2008, p. 19-22).

No entanto, Ceserani (2008) afirma que é apenas do século XVIII para o XIX que ocorre uma consolidação das primeiras obras de fato fantásticas, influenciadas pelas características do gótico medieval. [1] A partir daí autores como Byron e Goethe influenciam obras posteriores, dentre os destaques Frankenstein, ou prometeu moderno (1823), de Mary Shelley. Essa e outras obras inauguraram uma nova percepção sobre a fantasia voltada principalmente para as ideias do horror e terror na Europa, além de compor as primeiras faces do que viria a ser a ficção científica, algo salientado por Lovecraft, também escritor dos gêneros. “O clássico mundo maravilhoso, explicitado na forma do “era uma vez” dos contos de fada, redimensionou-se em novas construções narrativas que provocaram os leitores a experimentar possibilidades de compreensão do real, marcadas pelo universo imaginativo do medo, da dúvida e das ambiguidades [...] A literatura foi invadida por fantasmas, mortos-vivos, vampiros e lobisomens, criaturas fantásticas que significaram a força motriz da literatura fantástica do século XIX, com suas nuances de incerteza e dubiedade” (TREVISAN, 2013, p. 28).

        Assim, a literatura considerada fantástica desenvolveu-se e partiu de veredas que se estenderam desde as epopeias, como Odisseia, de Gilgamesh ou Beowulf, até chegar ao horror do século XIX, instrumentalizando novas formas de ser e ver o mundo. É importante frisar que o escopo aqui apresentado mostra um panorama voltada ao continente europeu. Esperamos publicar em breve novos posts para discurtirmos juntos sobre o insólito em outras partes do mundo. Vai ser massa! 


REFERÊNCIAS

CARMO, Aguinaldo Adolfo do. Considerações sobre o fantástico na literatura. In: Revista do Mestrado em Letras - Linguagem, Cultura e Discurso. V. 06, N. 1. UNINCOR, 2015.

CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006.

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em literatura. Trad. Celso M. Paciornik. SãoPaulo: Iluminuras, 2008.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Tradução Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

TREVISAN, Ana Lúcia. Caminhos da representação do real. In: Caderno Glo­bo Universidade: O Realismo Mágico no Século XXI. N. 03. Rio de Janeiro: Globo, 2013, p. 26-31. 



[1] [...] um gosto antigo e estetizante como pano de fundo histórico, o estilo e ornamentação da tardia Idade Média e do Renascimento; um gosto ambiguamente iluminado pelas manifestações do sobrenatural, dos fenômenos como o mesmerismo e parapsicologia, das visitações e presenças de espíritos de fantasmas uma atração fascinante pelo mistério da maldade humana, das perversões dos instintos e do caráter [...] (CESERANI, 2006, p. 89).

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