(Sob o véu, 2020, fotografia de Thalya Amancio).
Sem Rosto
Eu não tenho rosto ou eles?
Enquanto encaminho mais
um atestado de óbito, minhas crises se esvaem e o único eco é vazio da certeza
de escrever, caracterizar, arquivar. Desumanizar. O eco do trabalho mecânico.
Eu não me deixo ir por
muito tempo por mares revoltos de mim. Há boatos de que essa viagem não tem
passagem de volta. E talvez eu não possua coragem para me aventurar, como fez
Ismael. A caça a baleias pode ser adiada, mas não sei por quanto tempo. Eu nem deveria
saber ou pensar sobre isso. É intermitentemente proibido. Contudo, eu faço.
Sinto culpa?
Tempo… É sempre ele a
ditar minha vida. Talvez eu sempre tenha me preocupado com o tempo, mas agora
parece que estou sendo esmagada por seu peso, um barulho de ossos se quebrando,
estilhaçando, como vidro? O tempo…
Uma unha quebra, mal a
olho. O sangue começa a escorrer e é como se finalmente recobrasse. O barulho
do trabalho mecânico não me prende, eu viajo. Minha mente controla o corpo. O
choque de acordar de um pesadelo.
A vida era mais bonita,
fresca, limpa, pura… Eu não precisava escolher entre viver ou morrer. Talvez os
dois.
Seus braços acariciando
meus cabelos e palavras sussurradas, abafadas, tememoras, noites… Eu vivia,
agora estou morta. Faz dez anos que tudo mudou: os gritos, as revoltas, os
tiros, a violência e enfim, o silêncio.
“Eu te amo.” O choque
de lábios e abraços, com a chuva lá fora lavando as tristezas, apagando as
chamas.
Não posso me conter
enquanto a enxurrada me carrrega. Eu comprei minha passagem, não há como
trocar. Nenhuma voz a essa hora. É madrugada lá fora. Ninguém poderia me chamar
de volta? Estou me tornando poeira de lembranças. Poeira, cinzas de fantasmas.
Eu não existo? Já existi, porém faz tanto tempo… Nem me lembro mais como
respirar.
“Se machucou?” Uma voz
chama do outro lado da névoa. Eu vejo. Não me movo, tentanto sair da corrente
de ar que me leva para longe. Finalmente atravesso.
“Sim… Não foi nada.”
Dou um sorriso fraco, doente, trôpego. Consegui voltar, mas retardo a ida. Sei.
“Você está bem?” Ele
indica um quartinho no fundo e sei o que deseja: meu corpo. Apenas isso. Nos
tornamos frios, gélidos, carentes de afeição e atenção, perdidos, tentando
encontrar caminhos para fugir das viagens.
Nego. “Estou.” Eu
queria, quero. Entretanto estou começando a me importar. Não podemos. Foi
instituído; foi intermitentemente proibido. Eu nego, mas foram eles em seus
escritórios que negaram. Ao menos tenho minha mente.
Ele lança um olhar para
mim e então se vai, como veio. Às vezes chego a acreditar que não existe, que é
apenas o fantasma dos meus desejos. Minha criação para suprir minhas
necessidades… Minhas necessidades que foram negadas…
“Eu te amo.”
“Preciso respirar!”
Declaro para o vazio e é como se ouvisse a ninfa eco. Saio para o jardim, o sol
tentando sair de nuvens pesadas, um dia tentando viver. E me deparo com a
queima dos Sem Rosto. Sempre há deles para queimar, tornar cinzas.
Eu sou sem rosto?Ou eles? Quem sou?
O olhar no espelho
revela um rosto de uma desconhecida. Um rosto que não diz nada sobre mim. Um
rosto inexpressivo. Alguém tanto usado e manipulado que já não se conhece.
Os coveiros chafurdam
nos restos deles, buscando o que pode ser aproveitado. Pelo menos almejam algo,
mesmo que restos…
Os sem rostos são
difíceis de lidar. Principalmente para os outros.
Já conheci um.
Ele era um jovem de
vinte anos, e vivia preenchendo seus pensamentos. Eu o entreguei. Uma ligação
anônima, alguns cliques, respostas e pronto. Estranho como uma vida poderia ser
destruída.
O sangue em meu dedo
estancou e os coveiros apagaram as chamas, dando o trabalho por encerrado. Por
enquanto.
“Você está bem?” A voz
do fantasma me chama. Estou quase acreditando que não existe. Que eu não
existo. Serei como os sem rosto? Desde quando?
A lei instituiu que não
podemos fugir. Estamos livre para viver… Seu lema: liberdade ou morte. A morte
deve estar viva e livre. Eu sinto.
“Sim.” Me viro para
encará-lo.
Um sorriso em seu rosto
ainda em formação.
Também sorrio, pego
seus dedos gelados e me recolho em seu abraço.
Imediatamente volto a
sangrar. Embarquei…
Thalya
Amancio é graduanda de Letras Português na Universidade Estadual do Ceará, campus FECLESC e pesquisadora de Literatura, principalmente do Romance Histórico de Ana Miranda e o Romance "Angústia" de Graciliano Ramos.
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