Apesar de Jean Pierre Vernant afirmar que o politeísmo grego é considerado hoje uma religião morta, a
influência da mitologia cultuada na Grécia Antiga ainda é muito presente em
nossa cultura popular ocidental, estando em expressões populares, filmes, séries, etc.
Mesmo rica em histórias epopeicas que servem como base para a construção historiográfica da Grécia Antiga, a exemplo da obra de Homero, Odisseia, usada como uma das fontes basilares para contar a história do período primário da Hélade, muitos historiadores não consideraram a parte mitológica da religião grega em suas pesquisas, como A. J. Festugière. Segundo ele, somente o culto, nessa religião, pertence ao âmbito religioso.
A religião politeísta grega também se torna alvo da construção de arquétipos e estereótipos sendo chamada de “religião primitiva” ou “mágico religiosa”. A questão é que as religiões antigas não são nem menos ricas espiritualmente nem menos complexas e organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas são outras. Tal religião é tão complexa e profunda como outra qualquer e neste caso serve em sua construção, principalmente literária, das esferas social, econômica e política na Grécia Antiga.
A
ideia da religião grega era construir uma atmosfera de personalidades divinas
que não fossem criadoras da Terra e do universo apenas, mas também, originadas
deles. Como o exemplo de Afrodite que surge quando os testículos de Cronos são
cortados por seu filho, Zeus e caem no mar e são fecundados pela terra, gerando
a deusa do amor. O elenco de deuses gregos acaba por ser humanizado, não
perdendo seu lugar de superioridade e divinização, mas possuindo defeitos e
virtudes. Há, portanto, algo de divino no
mundo e algo de mundano nas divindades.
Para os gregos, o divino não estava atrelado a ideia de onipotência e onipresença, como na cultura monoteísta ocidental de raiz judaico-cristã. O divino, para os gregos, não era a separação do natural e o sobrenatural e sim, a convergência de ambos. Os fenômenos naturais da Terra não eram associados a existência de um deus fundido naquele fenômeno, mas a influência e o poder que ele exercia e detinha. O raio, a tempestade, os altos cumes não são Zeus, mas de Zeus. A constituição social da religião na Grécia estava intimamente ligada a integração.
Em relação ao culto religioso, era algo particular de cada fiel. Como observa Gernet, o pensamento dos mistérios permanece suficientemente confinado para que nele se perpetue, sem grande mudança, a concepção homérica de uma psykhé, fantasma do vivo, inconsistente relegada sob a terra. Para cada cultuador, havia uma preparação íntima do que era devotar tempo e obediência àqueles que habitavam o Olimpo, protegiam, mantinham e habitavam o mundo através de um plano sobre-humano.
A
necessidade de transformar os deuses em seres cada vez mais próximos dos
humanos era tanta que os seres divinos relacionavam-se com mortais e
“apadrinhavam” cidades e oráculos. Tinham de pertencer a algum lugar e ter de
certa maneira uma participação popular indireta. De certo modo, como escreve Marcel Detienne, tornar [os deuses] cidadãos era necessário para
serem plenamente deuses.
A
religião grega não tinha profetas, nem salvadores e sim oráculos e figuras
heroicas. Não havia divisões clericais, hierarquizações claras ou escrituras
sagradas. A Grécia era tomada de grandes templos e principalmente, obras
literárias que engrandeciam as figuras divinas e suas derivações humanas e que
antes de serem transcritas, fazia parte da construção social do grego através
do compartilhamento do mithos pela oralidade.
[...]. Se não existissem todas as obras de poesia épica, lírica, dramática, poder-se-ia falar de cultos religiosos no plural, mas não de uma religião. Sem a literatura, a religião grega perderia força e seu caráter social, isso porque não se deve desvencilhar-se da mitologia como construção historiográfica. O mito grego é carregado de simbologias e alegorias da realidade da época, compondo não só um mundo de lirismo, mas de verdades metaforizadas. E é preciso atenção e acuidade para desenvolver pesquisas através da mitologia e literatura grega.
Apesar dessa conjuntura assumida pelas obras literárias da Grécia Antiga, os próprios gregos assumiram uma postura ambígua, no sentido de também entranharem o pensamento filosófico além da fábula mitológica que constituía o meio cultural-religioso da Grécia. Um confronto intelectual que mostrava a diversidade de pensamentos da antiguidade clássica grega e exibia as construções paralelas e basilares do conhecimento religioso e racional da Grécia Antiga. Com o passar dos séculos a desconstrução da posição social da mitologia grega ganha novos caminhos, recebendo argumentos de filósofos do século XIX que procuraram distanciar o mito da razão e se voltaram para uma base de pesquisa voltada para a história natural, a epigrafia e a arqueologia. Assim, a rejeição da mitologia repousa sobre um preconceito anti-intelectualista em matéria religiosa.
Em contra partida, estudiosos como Jean Pierre Vernant, grande historiador do pensamento grego, foi um dos responsáveis por valorizar as dimensões culturais e mais subjetivas da história. Sobre os deuses, Vernant afirma que a formação
plural de personalidades divinas não passa da representação da ânsia do ser
humano de satisfazer os seus prazeres e agonias, direcionando-se no final das
contas para uma mesma linha divinal. Por
trás da variedade de nomes, das imagens, das funções próprias de cada
divindade, supõe-se que o rito aciona a mesma experiência do “divino” em geral,
como potência supra-humana. Nesse contexto a ideia do divino
divide-se conforme as necessidades de cada fiel sendo que a ideia de
onipotência e onipresença se desfaz na imagem particular de cada deus grego. [...]. Os ferreiros a Hefesto, os soldados a
Ares, os caçadores a Ártemis, os cantores acompanhados da lira a Febo (Apolo),
assim como os reis ao deus-rei [Zeus].
Em matéria dos deuses, é perceptivo a figura de Zeus como principal personalidade do Olimpo. Além de figura patriarcal, ele assume ao lado de seus irmãos, Poseidon e Hades, uma tríade de domínio da existência de tudo: Zeus comanda os céus, Poseidon comanda os mares e Hades comanda o submundo, o lugar dos mortos, enquanto que a Terra é a concomitância de ambos. Ao lado de sua irmã-esposa, Hera, Zeus assume a figura masculina e sua esposa a figura feminina, a representação da fertilidade e da união entre o homem e a mulher que constroem toda uma organização e simbologia social.
A REPRESENTAÇÃO DO DIVINO
Zeus também assumiu diversas facetas em lugares diferentes da Grécia, chegando a tornar-se um ser que não possui vida eterna para a cultura da ilha de Creta, com direito a túmulo. Uma ideia generalizada de Zeus é sua figura heroica, reforçando a construção epopeica da religião grega. Zeus foi o filho que matou o próprio pai, que engolia os filhos; combateu Titãs e mantém o mundo sob sua ordem.
A pluralidade do panteão dos deuses gregos representa não só a diversidade e cada necessidade humana que se personifica em cada figura do Olimpo, mas também o ideal de perfeição e jovialidade construída na conjuntura social e estética grega, além do prolongamento linear das perfeições que se manifestam na ordem e na beleza do mundo. Deuses que se ligavam ao mundo por relações, conflitos e nomeações em cidades que se erguiam em uma mitologia política e uma política entre mitos, além de oráculos que desfiava futuros, construía caminhos e soprava no imaginário humano toda a solução da agonia da existência. Tais crenças perpetuaram-se na cultura de outros povos que absorveram a religião grega, dando aos seus deuses nomes diferentes, mas com características ainda advindas do ideal de imagem grego.
A cultura popular ocidental atual, como dito no início, ainda se alicerça em muitos pontos do pensamento grego e suas crenças religiosas fazem parte de um palco de representações, como exemplos de vários filmes: 300, Fúria de Titãs, Tróia, Helena de Tróia, dezenas de versões de Hércules, além de outras adaptações, como a do dramaturgo brasileiro Dias Gomes que escreveu a novela Mandala, produzida e exibida na década de 1980 pela rede Globo, que tinha como inspiração a peça Édipo Rei. Obras amplamente exploradas pela mídia que representam a perpetuação ao longo dos séculos do que era crer, crescer e ser um grego.
REFERÊNCIAS
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Tradução: Joana Angélica D’Ávila
Melo – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
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