Pular para o conteúdo principal

Lisístrata: Guerra e Sexualidade na Grécia Antiga.


Eu não deixarei que nenhum homem do mundo, marido, amante ou mesmo amigo...se aproxime de mim de membro em riste. Se for tentada, reagirei, me transformando na própria tentação. Me farei provocante, usando minha túnica mais leve, para que meu homem se queime no fogo do desejo. Mas jamais me entregarei a ele voluntariamente...
Adaptada da comédia Lisístrata, a greve do sexo


POÉTICAS DO COTIDIANO: Lisístrata: A Guerra do Sexo

Escrita por volta de 411 a.C., a peça teatral grega de comédia Lisístrata, a greve do sexo foi escrita por Aristófanes, famoso por outras obras como As Nuvens e Rãs. Aristófanes nasceu em 444 a.C. em local desconhecido. Participou de muitos concursos teatrais e ganhou inúmeros deles. Autor de mais de quarenta comédias, não restou muito do acervo de sua autoria, sendo hoje em dia acessível ao público cerca de onze de suas obras, enquanto as outras se perderam ao longo do tempo. Morreu por volta de 385 a.C. a 380 a.C. Seu filho deu continuidade a vida de poeta já seguida pelo pai.
Segundo Aristóteles, em seu livro Poética, a comédia não era um gênero tão valorizado na literatura grega como a tragédia e as epopeias, ficando abaixo até mesmo das obras líricas. Apesar dessa imagem não tão prestigiada da comédia, que era encarada como um gênero de descontração e puro entretenimento, foi justamente a partir dela que Aristófanes construiu uma história, hoje apropriada como uma grande crítica ao lugar social da mulher no mundo grego. A edição analisada tem tradução de Millor Fernandes que traz um tom informal e dinâmico à peça.
Em Lisístrata, Aristófanes conta a história de uma mulher, a mesma que dá nome à peça, que revoltada com os conflitos recorrentes entre atenienses e espartanos, decide convocar as demais mulheres da Hélade para tomarem posição sobre aquela situação belicosa, que apenas acarretava uma desordem social e completa desestabilização político-econômica, tomada pela sensação de perda em ver filhos e maridos saírem de suas casas para guerrearem, correndo o risco de não mais voltarem.
A partir dessa problemática, esse grupo de mulheres capitaneado por Lisístrata resolve, então, usarem o símbolo de sua maior “fraqueza” e dádiva social como arma contra a guerra: a questão sexual. Sendo sempre encaradas como prisioneiras do lar, servindo apenas para procriação e não tendo papel social relevante na sociedade grega, a imagem feminina, representada pelas diversas mulheres da peça e que compõem grande parte do elenco, passam a revelarem-se as grandes donas da situação mediante a decisão de declararem uma greve do sexo contra seus maridos. O plano era seduzir os homens o quanto podiam, deixá-los loucamente excitados, mas no ápice do momento, “abandona-los de armas nas mãos.”
Tal situação gerou conflitos e indecisões entre as mulheres, que depois de resistirem, entram em consenso e decidem seguir o plano de Lisístrata. Com o juramento feito, outro grupo de mulheres encaminham-se para a Acrópole, a principal zona da cidade de Atenas, onde concentram-se os grandes templos e centro financeiro da pólis. Tomando essa região, os homens não mais poderiam conseguir fundos para guerrearem e ainda ficariam sem saciar suas vontades mediante a decisão das mulheres atenienses.
Com uma linguagem popular, semelhante a conhecida “comédia pastelão” atual, muito pela contribuição da tradução de Millor Fernandes, Lisístrata se mostra uma obra literária que não possui apenas a função de entreter. Através da imagem do engajamento e da união, a peça se apresenta como um compromisso social de sororidade. Tal narrativa, se fosse feita com uma conotação dotada de maior seriedade poderia até mesmo ofender grande parte da Hélade. O lugar social da mulher grega, principalmente em Atenas, era tão dotado de um posição subjugada perante o homem, que a própria ideia das mulheres assumirem suas próprias decisões e declararem uma greve de sexo parecia absurda e, portanto, cômica, tendo em vista os parâmetros que regiam a sociedade ateniense.
O fato das mulheres tomarem a Acrópole, revela a grande relevância que essa parte da pólis grega possuía. Em uma colina, localizava-se a Acrópole, que segundo Pedro Paulo Funari, “era o lugar mais alto, ‘próximo ao céu’, onde estavam localizados os lugares sagrados e cívicos, como os templos e conselhos de anciãos. A parte alta representava a própria cidade, como um todo, por ali estarem os edifícios mais importantes [...].” Era na Acrópole onde as grandes decisões eram tomadas e essa região era símbolo máximo de poder da pólis.
Muitos homens tentaram atear fogo na Acrópole e espantar as mulheres de lá, mas outras figuras femininas aparecem e apagam o fogo. Em meio a tantos conflitos, vemos as contínuas discussões entre homens e mulheres sobre o conflito, revelando uma verdadeira guerra dos sexos.
Assim traçado o enredo, a peça desenvolve-se por outro seguimento. Muitas mulheres não resistindo mais aos seus próprios instintos, abandonam o plano de Lisístrata. Mesmo com desistências, o plano continua firme, atentando para o fato de que em um corpo social, as opiniões jamais serão generalizadas.
Com o passar da história, vemos que a situação torna-se insustentável. Os homens passam a perambular pela cidade, “armados”, com os membros em riste. Vemos a loucura dos sujeitos pela figura feminina. A situação chega a um momento curioso: os homens pensam em saciar-se entre eles mesmos, acentuando a conotação sexual que existia entre pessoas do mesmo sexo. Em Atenas, a relação entre homens era comum e chamada de “amor nobre”. A relação entre homens era tratado como um ciclo de aprendizado, a pederastia. “Este nome indica que se trata de uma relação ‘pedagógica’, ou seja, de educação, de uma relação entre professor e aluno. [...] Havia, pois, relações sexuais e amorosas entre adultos e meninos imberbes sem que, no entanto, houvesse a culpa [...].” A questão do igual não era tratado como algo religiosamente profano – concepção cristã – apesar da imagem de um homem afeminado ser repudiado na sociedade grega.
Ao final da peça, vemos os homens rendendo-se a vontade feminina. Apesar de ser uma história que de certa maneira “empodera” – palavra comumente usada hoje em dia – o sexo feminino, ainda vemos na última fala de Lisístrata uma objetificação do gênero, quando pede que cada homem pegue sua mulher e leve para casa, enfim, em paz, como se estivesse tratando de uma coisa que pudesse ser manipulada como quisesse. No entanto, é importante frisarmos que estamos falando de um tempo remoto em que não existia a precisão social que temos hoje sobre gênero, raça, classe social ou qualquer fator de distinção humana estudada.
Vemos hoje, uma mudança significativa nesse quadro social em relação a questão de gênero, se comparada ao que vemos nesta peça. Mas assim como na obra de Aristófanes, muito do que concebemos na cultura pop de filmes, romances e músicas ainda trazem a imersão de muitos sujeitos em concepções de mundo e sociedade que remontam a tempos de outrora, o que julgaríamos conservador e ultrapassado em muitos casos. Importante observarmos as relações que nos rodeiam e como podemos pensá-las e viver nelas. É um exercício constante que essa peça nos ajuda a compreender melhor ao compararmos o que foi esse período de Atenas com nossos tempos de hoje. Esses homens e mulheres da Hélade não sabem o que sabemos, nem viveram o que vivemos. Por isso o cuidado ao se pensar sobre eles. Afinal, eles não são recorrentes de um século sobrevivente a guerras mundiais e mudanças profundas no modo de pensar, vestir, ouvir e expressar o retrato do que concebemos ser uma nova consciência de si.


DICAS PARA LER, MEU POVO! :)

ARISTÓFANES. Lisístrata: a greve do sexo. Tradução de Millor Fernandes. Porto Alegre, L&PM: 2010.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 5ª ed. 3ª reimpressão – São Paulo, Contexto: 2015 – (Coleção Repensando a História)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Rainha do Ignoto (1899) de Emília Freitas: Redescobrindo Uma Obra Esquecida da Literatura Brasileira.

  Lançado no ano de 1899 em uma tipografia fortalezense, o romance A Rainha do Ignoto trazia em seu enredo temas e personagens não muito comuns para a tradição literária da época. Para compreendermos o complexo processo de “memoricídio” pelo qual essa obra passou, retrocederemos até a metade do século XIX para conhecer um pouco de sua autora. Emília Freitas era cearense, nascida em 1855, na região de Jaguaruana, mas na época pertencente a Aracati. Desde a infância, Emília entrou em contato com livros e rodas de conversa em sua casa, que a aproximavam do mundo intelectual. Com a morte do pai aos quatorze anos de idade, sua família acabou tendo que se mudar para a capital, Fortaleza, afim de recomeçar uma nova vida diante das dificuldades financeiras e o baque emocional do luto. É na capital cearense que Emília se forma no Curso Normal, voltado a formação de professoras primárias da época, como também se dedicou aos estudos da Língua Inglesa e Francesa. Além de ficcionista, Emília se...

O poder e o discurso: análise de "A Ordem do Discurso" de Michel Foucault

  FOUCAULT, Michel . A ordem do discurso :  aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 . São Paulo: Loyola, 2014.   As reconstruções de dizeres: sob o ombro de gigantes   Muitas foram as contribuições de teóricos, cientistas, filósofos e estudiosos da humanidade ao longo do tempo. E muitos se destacaram, enquanto outros foram esquecidos e silenciados durante um longo período e só então resgatados muito depois; às vezes, esquecidos pela perda de seus escritos, outras vezes, propositalmente, pela sociedade. Mikhail Bakhtin, Nietzsche, Albert Einstein, Newton, Stephen Hawking, Carl Sagan, Hannah Arendt, Hipátia, Marie Curie, Freud, Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste, Michel Pêcheux, entre tantos outros. Os últimos relacionados a Análise do discurso, como também Michel Foucault, autor de A ordem do discurso (1970) . Utilizando as palavras de Newton, todos olharam o mundo a partir dos ombros de outro, se é permitida essa analogia, F...

O Mundo de Ponta-Cabeça, de Christopher Hill

HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Publicada primeiramente no ano de 1972 na Inglaterra, a obra O Mundo de Ponta-Cabeça ( The World Turned Upside Down ) foi escrita por Chistopher Hill a partir de percepções do autor dotadas de preceitos marxistas e da nouvelle histoire. John Edward Christopher Hill nasceu em 1912 no condado de Yorkshire na Inglaterra. Afeiçoado ao socialismo, ele viveu por pouco tempo na União Soviética durante o ano de 1935 onde pesquisou sobre a vida cotidiana. Foi membro do Partido Comunista Inglês, juntamente com Edward P. Thompson e Eric Hobsbawn com quem tinham desde 1940 um grupo de outros historiadores filiados ao Partido, muito por conta do periódico de Hill sobre a Revolução de 1640. Contudo, mediante divergências sobre as manobras políticas e militares da União Soviética, ele se desliga do Partido em 19...