O
que há de particular entre o que consideramos humano e fantástico em cada um
dos filmes de del Toro analisados? Será que eles sempre respondem por esferas
distintas? Vamos tentar responder.
ALERTA DE SPOILER!
Se não desejar saber detalhes demais sobre os filmes, você pode assisti-los e em seguida, leia esse texto. Caso não se importe, só se joga na leitura!
ALERTA DE SPOILER!
Se não desejar saber detalhes demais sobre os filmes, você pode assisti-los e em seguida, leia esse texto. Caso não se importe, só se joga na leitura!
Antes
de qualquer coisa, é importante pensarmos sobre nosso objeto de análise: o
realismo fantástico apropriado por del Toro. O fantástico e o maravilhoso
foi pensado por teóricos como Irlemar Chiampi e Tzvetan Todorov como instâncias
distintas de existência. Enquanto que a hesitação e a alternância entre
acreditar ou não no fato sobrenatural reside no fantástico, a ideia de
imersão dos personagens em um meio que compõe toda a mentalidade deles forma a
instância de existência do maravilhoso. No meio dessas duas concepções,
ainda mescla-se o realismo, o que acaba compondo uma teia complexa de conceitos
que faz o vislumbre da magia e do sobrenatural parecer complicado.
O realismo
fantástico expresso em obras de autores como Edgar Allan Poe, Jorge Luís
Borges, H.G. Wells e Franz Kafka – este último notável por criar uma ideia de
fantasia ainda mais particular, adjetivado por muitos teóricos como “kafkiano”
– se constrói com base em fenômenos insólitos em um meio real concernente às
leis naturais conhecidas pelo ser humano, que ora espantam na grande maioria
das vezes causando medo, horror, hesitação; ora são naturalizados como algo
banal ou inato da existência, caso de Kafka. Ainda há a Alta Fantasia, mundos
inteiros idealizados e alternativos: a Terra Média onde é ambientada a história
de O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, ou As crônicas de Nárnia de
C.S. Lewis, lugares que não pertencem fisicamente a este mundo, onde
reside, segundo Todorov, o maravilhoso, como também são os contos de fada,
chamados de contos maravilhosos ou contos de mentira. Os personagens vivem
naquele meio, não se espantam com aquilo, pois são elementos familiares a eles.
No
entanto, diferente do realismo fantástico, o realismo mágico ou realismo
maravilhoso, como conceitua Irlemar Chiampi, traz expoentes como Gabriel
García Marquéz, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Isabel Allende, dentres outros autores da América Latina. Essas figuras trouxeram o que há de mais maravilhoso, na ideia literária do
termo, as concepções do sincretismo e crença do sobrenatural latino americano.
Aqui, o insólito ganha um teor naturalizado pelo restante do meio, porque está
embebido no seio sociocultural dos sujeitos. A ideia das crenças da América
Latina, que remontam os tempos da chegada dos europeus ao Novo Mundo, são
mergulhados no Realismo Maravilhoso – termo dito pela
primeira vez na apresentação do romance O Reino deste Mundo, de
Carpentier – e ganhou notoriedade mundial, rendendo até o Nobel de Literatura a Gabriel Garcia Marquéz na década de 1980, tendo o
livro Cem Anos de Solidão como destaque entre as obras deste fenômeno literário. O
Realismo Maravilhoso remetia para toda a constituição da América Latina
enquanto lugar mergulhado em crenças, folclore, e infelizmente, concedidas em
um meio paupérrimo socioeconomicamente. Era uma maneira de distanciar-se do
realismo fantástico clássico europeu e da Alta Fantasia com suas fadas,
faunos, reinos e bruxas e sendo substituído por crenças de maldições em
famílias, criaturas ou anomalias baseadas na crença popular, instantes de
devaneio e fantasia, simbologias críticas ao regimes ditatoriais de direita no Cone Sul Latino Americano. No Brasil, o Realismo Maravilhoso não teve tantos adeptos ou a notoriedade em relação ao restante da América Latina.
Pensar
tudo isso é refletir as diversas significações que esses termos - fantástico,
mágico, maravilhoso – possuem, apesar de muitas vezes usados sem categorização,
pois não há um grande consenso entre os teóricos sobre isso, mas que carregam
pesos socioculturais distintos e por isso são empregados em contextos
igualmente diferentes: a razão pela qual o termo realismo mágico foi criado na
Alemanha difere do contexto em que foi apropriado na América latina ou do peso
que a palavra maravilhoso teve para Carpentier ao pensar a realidade
embebida de elementos insólitos na América Latina e Caribe. Por isso, imerso
nesse classicismo de influências, del Toro poderia ser melhor empregado na
produção de figuras ditas “universais”, popularizadas e difundidas por um
imaginário eximiamente europeu, tomado de horror e hesitação, empregando então,
a ideia do realismo fantástico para pensar suas obras com suas devidas particularidades,
mesmo sendo importante salientar que suas críticas a regimes ditatoriais muito
aproxima a construção de seus enredos a perspectivas voltadas ao realismo
maravilhoso, o que não deixa de ser uma influência.
Em A
Espinha do Diabo, o lirismo de passagens de poemas e cenas de profundo teor
emocional, com morte de personagens e choros copiosos contrasta com a dureza
das cenas de sexo entre os adultos e violência contra as crianças. O grotesco,
que muito se imagina como elemento pertencente ao que é insólito e fantástico
mais se reflete nas ações humanas do que nos monstros e fantasmas. O espírito
do garoto que guia Carlos e as outras crianças do Orfanato se corporifica,
assume uma postura muito “viva” ao final do filme e influi totalmente no
desfecho da história. Os elementos fantásticos e humanos se misturam e
mergulham no mesmo micro cosmo de repressão em que são ambientados,
representando o autoritarismo da guerra civil espanhola.
O
Labirinto do Fauno, com uma dramaticidade carregada de
subjetivismo e múltiplas interpretações, assume três espaços no enredo: o
acampamento e o grupo de guerrilheiros, essencialmente figuras do real e nem
por isso menos grotescos; e o labirinto habitado pelo fauno, a esfera
fantástica, tomado de fadas e uma linguagem lírica e clássica. Ofélia muito
motivada pelo que lê, se vê imbuída da missão de cumprir as tarefas e seguir
para um reino que ela nem sabe se existe. “Os lugares extraordinários que ela
visita e os seres fantásticos que ela encontra são desdobramentos ou
interpretações que permitem que ela veja o próprio mundo sob outro foco. Vale a
pena ressaltar que, nesse caso, a imaginação fantástica da menina não é uma
fuga da realidade, mas possui uma dimensão política, uma forma de resistência
comparável às forças revolucionárias que se escondem nas montanhas.” O próprio
elemento de lugar que introduz o fantástico do filme, o labirinto, induz a uma
ideia de procura por algo, você entra em um lugar que não sabe se irá sair e
por isso busca novos caminhos como maneira para atravessar aquilo. Alguns
elementos transmitem sempre a dualidade entre o real e o fantástico: o tempo do
capitão é dado pelo relógio, o tempo de Ofélia tem sua noção gerada por uma
ampulheta dada pelo fauno. O grotesco ocupa lugar de destaque em ambas as
partes: o horror das cenas de tortura se equivalem ao medo que Ofélia tem do
terrível Homem Pálido (Doug Jones) que classicamente introduz algo mágico no
desconhecido: “Não toque na minha propriedade”, em referência ao jantar do
monstro que Ofélia não pode tocar em uma das tarefas que ela tinha que cumprir.
Enquanto Ofélia usa o giz mágico como solução para o problema, Mercedes, ao ser
torturada pelo capitão usa sua faca como solução, outra dualidade de elementos.
Em muitos casos, a dualidade também se reflete no autoritarismo presente tanto
no âmbito real quanto nos elementos fantásticos: quando o fauno fica furioso
com Ofélia por ela não cumprir a última tarefa de derramar o sangue de seu
meio-irmão recém-nascido, o grande e velho monstro assume um caráter
autoritário e a pobre menina, desobedecendo o fauno, perde o elo com o
fantástico e volta para o real, onde leva um tiro e morre.
A
Colina Escarlate é um digno representante do clássico
horror que tomou os ares da literatura fantástica do século XIX, tendo um ar
gótico embebido de romantismo literário: o acaso conduz as personagens a
descobrirem o próximo elemento que conduz a história a um novo acontecimento. Closes
de algumas cenas, como as iniciais, são claras referências a filmes clássicos de
horror, com personagens em figurinos de tons escuros e vampirescos, além de um
fotografia que muito lembra A forma da Água. Contudo, o verde usado nos
dois filmes assume significados diferentes.
Se A Colina Escarlate transmite
o medo através dos tons esverdeados e escuros dos ambientes e do vermelho do
barro e das criaturas, o verde em A forma da Água é em referência ao uso
das cores frias quando se fala de uma estética mais clean e futurista,
comprovado em uma das falas do vendedor que vende o Cadilac verde marinho para
o vilão: “A cor do futuro”. Diferente do realismo fantástico clássico dos
outros filmes, A forma da água ganha ares de ficção científica
futurista. Os cenários em laboratórios e os tons do monstro aquático denotam a
ideia de renovação dali pra frente. “É sobre o futuro que estamos escrevendo”,
parece querer dizer o filme a todo momento. Nesse tom futurista, a criatura
aquática, que apenas gesticula e reconhece linguagem humana, representa o
elemento fantástico – ele é um deus, como afirma o vilão ao final da história.
Quer algo mais sobrenatural que a ideia de deus? O monstro, que mal sabe o que
estão fazendo com ele – ou sabe –, denota uma postura mais de vítima e com certa passividade,
assim como assume os fantasmas de A Espinha do Diabo e A Colina
Escarlate. Del Toro promove uma inversão de aspectos: o grotesco é humano e
o monstro é humanizado. Outra prova disso está nas linhas narradas no início e
final de A Espinha do Diabo:
“O
que é um fantasma?
Um
acontecimento terrível
Condenado
a acontecer uma e outra vez
Um
instante de dor, talvez
Algum
morto que por alguns momentos ainda parece vivo
Um
sentimento suspenso no tempo
Como
uma fotografia manchada
Como
um inseto preso no âmbar.”
Del
Toro humaniza o elemento fantástico historicizando-o, trazendo a ideia do
insólito como produto genuinamente humano, seja isso de maneira literal ou
conotativa, consequentemente fora do eixo, caminhando para o fantástico. Tão
provável essa ideia que nosso cineasta ainda retorna as raízes do fantástico
clássico do século XIX, ou até mesmo a ideia do fantástico como um todo, tendo
origem de algo desconhecido que o ser humano sempre teve vontade de explicar.
No mesmo filme, doutor Casares (Federico Luppi) ainda fala: “Nesse país sempre
houve muita superstição [...] Toda a Europa está doente de medo e o medo adoece
a alma e certamente isso nos faz ver coisas.”
Vemos
coisas, criamos coisas. Mais que ninguém, retomando as palavras de Guillermo
que abriram esta análise, este cineasta sabe diluir linhas e constituir um
conjunto intricado e magnificamente belo entre o real e o fantástico,
corporificando muito do que se imagina humano no fantástico e muito de absurdo
nos humanos, usando na maioria das vezes temas políticos e históricos para
compor essa “face do mal”. Del Toro segue muito bem essa cartela e mesmo
construindo elementos repetitivos, que pelo menos para mim incomoda, como esses
classicismos de vilão – muito romântico nesse sentido; posso dizer que poucos
cineastas, senão um David Lynch – esse com certeza, eleva o nível do fantástico
para uma matriz de simbolismos e sonhos e...isso rende outra postagem –
consegue fazer tão bem o ofício de imantar no mesmo lugar o que concebemos como
humano ou fantástico, inverter as coisas, politizar o negócio e ainda sobrar
tempo para chamar o Doug Jones para se vestir de monstro, escolher mais uma
magnífica cartela de cores de encher os olhos, se conduzir por uma trilha
sonora envolvente e um prólogo reflexivo que sempre anuncia o melhor que o
enredo vai mostrar sendo finalizado com um epílogo tão embebido de lirismo
quanto as mais belas cenas de seu filme.
Del Toro conduz o expectador ao que ele
mais quer sentir: a expectativa. Seus enredos construindo elos narrativos que
vão entregando as descobertas aos pedaços nos conduz ao mais clássico que se
tem na literatura fantástica: o apreço pelo novo, em muitos casos,
aparentemente inexplicável. Transformando homens em “monstros políticos” e
dando a fantasmas e criaturas aquáticas a voz para expressarem seu lugar de
fala que como uma rara exceção, foge do horror clássico, nosso cineasta nos
conduz a um lugar onde a realidade se deixa levar pelos resquícios da fantasia
que são produtos da própria ação humana, muito além de só imaginar. O
velho fauno que desafia Ofélia a burlar compromissos e se deixar levar pelo
desconhecido, guia a garota por uma vertente depreciativa de uma realidade que
reprime em face de uma dimensão paralela que instiga ao sonho e a glória da
fantasia: um tanto subversivo ao olhos dos fascistas que compõem o núcleo
antagônico de O Labirinto do Fauno.
Compondo
elementos fantásticos clássicos embebidos na história política, social e
cultural, del Toro se mostra um representante do esmero entre a estética visual
e roteiros lineares mergulhados numa realidade imbricada ao que o ser humano
mais sonha e ao mesmo tempo, mais teme: a possibilidade de imaginar ser algo
além do que a mente e o corpo permite.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis; CASARES, Adolfo
Bioy; OCAMPO, Silvina. Antologia da Literatura Fantástica. São Paulo:
Cosac Naify, 2013.
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo
Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
COLINA escarlate, A. Direção: Guillermo
del Toro. Produção: Legendary Pictures. Califórnia: Universal, 2015. 1 DVD (119
mins)
ESPINHA do diabo, A. Direção: Guillermo
del Toro. Produção: El Deseo S.A./Tequila Gang/Anhelo Producciones. Madrid:
Sony, 2001. 1 DVD (106 mins).
FORMA da água, A. Direção: Guillermo
del Toro. Produção: Bull
Production Califórnia: Fox Searchlight Pictures, 2017. 1
DVD (123 mins)
LABIRINTO do Fauno, O. Direção:
Guillermo del Toro. Produção: Estudios Picasso/Tequila Gang/Esperanto Filmoj.
Madrid: Warner Bros, 2006. 1 DVD (119 mins).
MOISÉS, Massaud. A Criação
Literária: prosa I. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006
SÁ, Daniel Sarravalle de. O labirinto
do fauno e A espinha do diabo: o g~enero fantasia nas representações históricas
da guerra civil. In: Revista de Literatura, História e Memória. vol. 08
- nº 12, 2012.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à
Literatura Fantástica. São Paulo: Editora Moraes, 1977.
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