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A Ressignificação da Existência de Africanos e Africanas no Brasil a Partir da Escravização.

As cristalizações de imagens e posturas que associamos ao africano ou ao índio não diz respeito a uma ressignificação que partiu do europeu e atingiu apenas ele mesmo. Isso também ocorreu com as comunidades africanas e indígenas, que tiveram sua percepção da realidade do meio em que viviam ressignificadas. A própria noção do ser foi repensada. 

Tais percepções foram e ainda são pesquisadas por muitos autores. No que diz respeito a cultura africana e afro-brasileira, a ideia de escravo sempre associado ao africano é dito por Marina de Mello e Souza como uma construção social e tal pensamento mecânico e associativo deste estereótipo remonta às condições sociais desses sujeitos ao chegar ao Brasil em que “uma das estruturas de controle social sobre a população escrava, mesmo quando esta circulava livremente pelas ruas e caminhos, era a que associava a escravidão à cor da pele” (SOUZA, 2007, p. 94).

Mediante o contato, em muitos casos violento e invasivo, do homem branco ao chegar em África, povos que viviam no litoral passaram a resistir à chegada dos viajantes, atirando flechas ou fazendo emboscadas, o que com o tempo passou a se modificar, tendo os europeus a oportunidade de comercializarem com esses mesmos povos e facilitar sua reentrância neste novo território. Isso ocorreu através de acordos, que em muitos casos traziam mais vantagens a um lado que de outro. Com a introjeção cada vez mais invasiva do colonizador, que passou a levar os habitantes destes territórios em seus naus como prisioneiros, as relações entre muitas tribos, muitas vezes nem um pouco amistosas, passaram a ser ainda mais conflituosas, gerando embates entre esses povos para que os derrotados nas guerras fossem capturados e comercializados aos europeus. Tornou-se em muitos casos, uma tentativa de fugir da escravidão entregando o outro em troca. Esse panorama foi se construindo diante das tentativas dos europeus em encontrar novas rotas para as Índias e também de explorar o próprio continente africano, rico em recursos minerais.

Assim, com toda a nova conjuntura que ia moldando os âmbitos dos povos africanos, a ideia de raça passou a ser pensada enquanto distinção social para legitimar tamanho desmonte que estava se iniciando. Ser branco ou negro é uma construção colonizadora e a distinção étnica que se encontrava na África ia muito além da ideia europeizada e reducionista de raça. Segundo Borges Santos:


Durante os séculos XVI e XIX, os habitantes da África não se viam necessariamente como “negros”, muitos deles se viam como grupos diferenciados e até inimigos entre si. O termo “negro” é uma construção da população branca em relação ao outro. A construção do vocábulo aconteceu com a supressão de várias identidades étnicas locais dentro do continente africano. Até mesmo a noção de África como território homogêneo é uma construção advinda da Europa. Identidades e diferenças construídas para servirem de base ao sistema escravista que estava em andamento. (2017, p. 02)

 As constituições culturais, econômicas e políticas em África antes da colonização levavam os povos a condições bélicas em que na grande maioria das vezes, os escravos eram derrotados de guerra ou sujeitos endividados. Em muitos casos, a ascensão social ainda seria possível. Todas essas condições e possibilidades são reconfiguradas com o desenvolvimento do sistema escravista mercantil advindo dos povos europeus. Não que um sistema escravista seja mais brando que outro, mas é forçoso refletir que a invenção da raça foi mecanismo importante para se pensar a noção de escravo no contexto da colonização dos tempos modernos de expansão ultramarina europeia.

MARES, ENCONTROS E DESENCONTROS 

A dura viagem dos africanos pelos navios, muitas vezes intitulados tumbeiros, revelava o caráter mercadológico que o africano adquirira. “Embarcados, os cativos são postos a ferros até que se perca de vista a costa da África. [...] é bem verdade que as condições de aprisionamento dos cativos eram horríveis.”

Suprimidos pelo medo do desconhecido e o cruzamento de africanos advindos de diversas regiões do continente com línguas e costumes diferentes a fim de evitar revoltas nos navios, os africanos e africanas começam a ter noção de sua realidade sendo ressignificada gradativamente. É chegando ao Brasil, que durante seu período enquanto colônia e império importou 38% de toda a comunidade africana receptada nas Américas, que o agora escravizado é remanejado em feiras e leilões para as mãos de seus interessados. Recursos como, manter por um período o escravo resguardado apenas engordando e se recuperando da dura viagem, além de passar óleos e outros condimentos na pele e nos dentes no momento da exposição, eram artifícios utilizados para compor a imagem de uma mercadoria literalmente lustrosa, que chamasse atenção pelo vigor e qualidade. Com a compra feita, senhores de escravos, que muitas vezes contratavam uma demanda de cativos para que viessem diretamente de África para suas fazendas ou comercializavam internamente os escravos para outros fazendeiros sem tamanhas condições de custear uma viagem além mar, recepcionavam os africanos agora coisificados e integrantes de uma nova constituição da força de trabalho na colônia.      

Pensando isso, Katia Mattoso reflete que a condição de escravo estava diretamente ligada ao seu senhor, bem como sua inclusão em um meio totalmente novo e adverso a sua realidade anterior, sendo que:


[...] a nova personalidade do escravo é criada por essa inserção, numa sociedade dominada por um modelo branco, de homens pretos ainda sob inspirações e padrões africanos. São as tensões continuadas dessa integração difícil que obrigam a própria vida do escravo a adaptar-se às relações de tipo escravista e o levam a todos os esforços, todas as humildades, todas as obediências e fidelidades para com os senhores infalíveis. (MATTOSO, 2003, p. 102)

 

Essas novas configurações de existência atribuída ao africano enquanto escravo de intenso valor comercial e força produtiva, convergiram para uma remodelagem de suas relações, não só com seus senhores, como também entre a própria comunidade cativa.   

A noção do africano escravizado passa a se modificar com o passar dos séculos. Sua humanidade começa a ser discutida e repensada por abolicionistas a partir do século oitocentista, mas também é refletida pela própria comunidade cativa, que revela-se uma redefinidora de seus próprios e novos costumes como forma de resistência, refletindo-se por meio de fugas e reivindicações.


[...] o negro no Brasil e no resto da América passou a ser visto como uma realidade única e monolítica, e, com o tempo, foi levado a enxergar a si mesmo também desta maneira. Perdidos os antigos padrões de identidade que existiam na África, o negro afro-brasileiro sentiu-se compelido a iniciar a aventura de construir para si uma nova identidade cultural, adaptando-a a própria cultura colonial. Com isso irão surgir novos padrões religiosos, diversidades alternativas sincréticas, uma nova arte e uma nova música, e tantas outras contribuições que já não são propriamente africanas” (BARROS, 2014, p.48) 

A nova postura que compele ao africano um sujeito inserido em uma nova realidade e aparentemente passivo e concernente a esta, revela-se um palco de disputas de poder e discursos de legitimação de ordem e obediência que vão remanejar as posturas de grandes fazendeiros, agora senhores de escravos, e seus cativos que irão se convergir em novos e dialógicos contatos. Pensando nisso, Mattoso ainda argumenta sobre o papel do dono e muitas vezes, comerciante de escravos: “Alguns senhores chegam ao ponto de atiçar rivalidade entre etnias, oferecendo aos escravos de uma delas os serviços suaves e aos outros as tarefas penosas” (2003, p. 104). Em solo africano, a diversidade étnica e natural do continente promoveu a formação de um mosaico cultural de línguas e costumes que foram diluídos parcialmente pelo processo colonizador. Essa diversidade refletia-se nas disputas entre muitos povos da África, fator percebido pelos colonizadores que usaram isso a seu favor. Em terras brasileiras, esse acirramento de etnias conjeturou uma nova, porém retroativa forma de relação entre os africanos.

Tais mecanismos de acirramento de disputas entre os próprios cativos são táticas que acabavam tornando-se eficazes para configurar um conflito interno que impedisse uma revolta voltada unicamente contra o senhor. Em muitos casos, tais tensões revelavam-se entre gerações distintas de africanos que eram desembarcados nos portos brasileiros. Os crioulos eram escravos nascidos no Brasil que já cresciam assimilando a língua e os costumes locais diferentes dos africanos, ditos boçais, que haviam chegado em terras brasileiras há pouco tempo, e que ainda sequer sabiam o idioma ou tradições da terra. Essa relação de conflito de gerações e sujeitos nascidos em contextos diferentes se configura mais complexo de análise por pensarmos as diferenças sociais que haviam entre tais cativos. Crioulos - filhos de africanos com africanos, ou africanos com portugueses, por exemplo - poderiam subir a cargos mais consideráveis dentro da própria comunidade cativa que faziam parte. Isso porque muito do que se caracteriza para o crioulo em seus costumes já estava imerso nas relações de poder escravistas, “boas” aos olhos dos portugueses, pois o negro, “para subir na escala social e conquistar sua parcela de vida privada, precisa utilizar os valores da sociedade branca de adoração.”

Os crioulos, por sua vez, ainda podiam permanecer nas fazendas de seus senhores mais facilmente que os novos escravos advindos da África. Isso pelo motivo de que já estavam inseridos nas relações concernentes ao meio sócio cultural da colônia, diferentes dos chamados boçais, que poderiam ser remanejados para outros locais. No entanto, crioulos, justamente pela maior inserção poderiam receber castigos mais severos que os novos integrantes do seio cativo que faziam parte.

A diversidade em África foi suprimida pelo processo colonizador escravista, para uma homogeneização abrupta de muitas das etnias e costumes de seus povos. Ao chegarem às senzalas, os novos integrantes das terras coloniais procuravam uma configuração semelhante ao que viviam em África, como bem afirma Marina de Melo e Souza: “iorubás se agrupavam a iorubás e bantos a bantos” (2007, p. 91). Contudo, essa organização não foi possível com tamanha frequência e as novas relações que foram se desenvolvendo, promoveram por um lado a unificação desses povos, tendo como eixo condutor a língua que agora eram obrigados a aprender para compreender as ordens do senhor e seus capatazes, além de costumes e crenças que mesclaram-se também as raízes ocidentais que advinham de solo europeu.

No entanto, tais reconfigurações remanejaram esses sujeitos para novas posições sociais à medida que eles emergiam no panorama ocidental de vivência. Assim, é forçoso a compreensão de que a integração de costumes não foi o único elemento definidor das relações afro-brasileiras, também foi marcado por relações conflituosas e de ordem complexa de cultura entre gerações distintas que imergiam em um seio adverso a seus costumes promovendo a disputa e a ressignificação de suas formas de trabalhar, relacionar-se e viver com o meio e seus semelhantes.

Ademais, pensemos que o panorama das discussões étnico-raciais no Brasil é pertinente em toda sua integridade de acesso às pessoas de diversas gerações que possam pensar juntas a compreensão de uma país onde mais da metade da população se identifica como parda ou negra, mas que ainda está imersa na ideia de uma nação de povo feliz e cativante, que recepciona o estrangeiro de braços abertos na favela, na avenida e que já derrubou os seus preconceitos. O que se esconde por trás do mito da democracia racial é a ainda constante ação desses grupos que lutam por mais voz, por mais tempo de tela, por mais lugar de fala. Essas relações que refletem o passado de mesclas culturais e conflitos de gerações se mostram ainda mais complexas ao pensarmos as mudanças e permanências que se construíram pelos séculos. Pense sobre seu passado e estará pensando sobre você mesmo.



REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. A Construção Social Da Cor: Diferença e Desigualdade na Formação da Sociedade Brasileira. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

BORGES SANTOS, Dargson José. Identidade Escrava: A Revolta de 1789 no Engenho de Santana. In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História. Disponível em: https://www.snh2017.anpuh.org/site/anais. Acessado em: 08 de junho de 2018.

MATTOSO, Kátia M. de Queiroz. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. – 2ª ed. – São Paulo: Ática, 2007.


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