Na obra A desumanização, de Valter Hugo Mãe, a personagem principal tenta criar uma barreira dentro de si da coisa que todos os humanos e mesmo outros animais são capazes de desenvolver, os sentimentos. Ela tenta não mais criar laços e assim, despistar as dores pela perda da irmã, que morreu. Esse processo introspectivo e curioso percorre todo o livro e seria uma das faces da desumanização pela qual a obra se embebeda no título: a ausência do sentir, do esmero pela própria vida e do outro, chegando ao momento da morte. Essa "desumanização" emana de todos os personagens, que mergulhados no luto de Sigridur, ora se fecham, ora se expressam de outras formas, ora se descobrem outras pessoas, ações que se desenvolvem a partir da reação à morte, pela percepção de um pedaço de existência que foi embora. Ironicamente, o processo de tentar desumanizar-se é humano e tudo que imaginar de inconstância e beleza de representação há nessa narrativa tocante de intensidade ímpar.
Essa obra sempre me vem à mente quando reflito sobre as Ciências Humanas e sua presença no mundo. Afinal, o que é humano? O que é estudar o ser humano? Não seria toda ciência em si humana? A área engloba uma diversidade de estudos e representações do planeta e seus povos, revelando também as muitas faces que uma mesma sociedade pode ter. História, Geografia, Sociologia, Jornalismo, Antropologia, Estudos Culturais, etc. Todas essas ciências descobrem em nós as constâncias e inconstâncias, mudanças e permanências das várias formas de viver, seja em um povo, ou ao longo do tempo, ou de um lugar, ou tudo isso junto.
Não há como desumanizar-se sem deixar de ser humano. Somos muitos, vários, enormes e pequenos, nunca unos em conjunto, mas em pessoa. Pela diversidade do que somos ou podemos ser em existência e curiosidade é que não se pode dedicar as Ciências Humanas um lugar à penumbra do conhecimento. Engenharias, Medicinas, Astrofísicas, todas no plural, todas vindas de mãos e mentes humanas, assumem seu lugar de importância no mundo. Constroem casas, abrem e operam corpos, descobrem estrelas celestes e do mar. Os cientistas das Humanas, por outro lado, descobrem estrelas na mente, desvendam não apenas corpos, mas mentalidades. Tantas ideias e processos nos cobram tempo de leitura e interpretação, para no final, culminar nas muitas representações do mundo.
Não se pode fugir das Ciências Humanas com raiva ou medo de ser "doutrinado". Não são doutrinas em si, mas formas de filtrar os pensamentos sobre as relações no mundo. Claro, a presença constante delas incomoda grupos e isso merece ser discutido também, os conflitos, as divergências. São formas de se ver no planeta e mudá-lo, se assim desejar. As Artes, como as Ciências Humanas, também viraram alvo de ataque para muitas pessoas negacionistas e mesmo, revisionistas. A Literatura, o Cinema, a Música são um refúgio para as tormentas que vivemos, são mais filtros, mais fluidos, mas também não com mais vida, apenas diferentes em intensidade. Somos todos humanos e precisamos dessas ciências.
E elas não devem estar apenas presentes, mas bem desenvolvidas. Você, caro estudante ou professor, que se debruça apenas em um resumo para saber o que Adam Smith escreveu em A riqueza das nações ou o que Karl Marx disse em um dos volumes de O capital, dedique-se a lê-los diretamente, um capítulo que seja, discuta com os amigos, troque ideias, como também pode fazer com filmes, canções, romances, tirinhas, pinturas, fotos, jogos e muito do que te rodeia. Não seria bom interpretar a fluidez do que vivemos, deixando apenas de ler e decorar tópicos para fazer uma prova? Não podemos mecanizar o que há de tão humano nas próprias Ciências Humanas: os filtros e as interpretações que essas pessoas fizeram da sociedade. Apenas em troca de um resumo? Seria mesmo uma perca de tempo? Seria mesmo tantas horas perdidas quanto as que se foram pelas fotos e posts do instagram, facebook, telegram ou qualquer outro app que inventem para dar aquele pseudo aconchego e conforto de presença humana na sua mente?
Tantos arquivos pelo mundo, tanta gente falando, e presumo, muitas escutando, reproduzindo ou mesmo não fazendo nada. Essas pessoas não estão desumanizando-se, nem mesmo aquelas que falam que as Ciências Humanas não possuem serventia. Sendo bom ou mal, ou para além dessa dicotomia, sendo isso que você é, acaba ainda sendo humano. Não se importar com outras pessoas, não cuidar uns dos outros, não se importar com mortes, matar ou mandar matar, ou mesmo judiar, espancar....nada disso é desumano. Não podemos ser ingênuos de achar que um verdadeiro ser humano é aquele que é bom e virtuoso. Seria muito cristão da sua parte, meu caro leitor. Não que deva ser ateu, mas que pensemos que sim, o ser humano pode ser tudo isso. Ele, ela, elx, pode tentar "desumanizar-se", mas será tão humano quanto qualquer outro na Terra.
Quando assistir um filme, uma série, ou ler um livro, ouvir uma canção ou alguém falar, perceba que essas pessoas que produziram, suaram e se esforçaram para criar essas representações, estão querendo dizer ao mundo um pouco delas. "Fale sobre alguém para mim e saberei mais de você do que da pessoa que você fala." São todos esses olhares e inconstâncias que as Ciências Humanas buscam, com o sentimento de seus pesquisadores e daquilo que eles pesquisam. Por isso, elas são importantes, tanto quanto a planta da sua casa ou o bisturi que um médico possui. São doses diferentes de humanidade. São ciências dosadas de maior subjetividade e nem por isso, menos criteriosas ou importantes.
Tais reflexões são necessárias para pensarmos a razão de regimes totalitários e autoritários terem a pretensão de controlar o trabalho de historiadores e jornalistas, cientistas das Humanas. Com certeza, Winston Smith teria muito a nos dizer. Se leu 1984, de George Orwell, pode imaginar que esses discursos de pessoas que pensam sobre humanos são aqueles que oferecem os filtros e representações de que falamos anteriormente, com base em pesquisa, possuindo interesses e temporalidades. Os mesmos filtros e representações que ameaçam outros discursos, os que recobrem a repressão e o mistério de sufocar realidades.
Estude para suas provas, mas pense sobre o mundo e os seres humanos, principalmente, o seu próprio mundo. Não pense apenas em "desumanizar-se" em prol de uma percepção reducionista do que vivemos. Somos humanos, podemos e devemos estudar nós mesmos, nossas inconstâncias, o que julgamos humanos e, principalmente, o que consideramos desumano. Sempre em conectividade com outras ciências, sejam elas consideradas humanas ou não.
Para pensar mais:
O Papel das Ciências Humanas de Jean Pierre Chauvin.
Universidade de São Paulo.
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