“Eu
sou um imigrante[...] A melhor coisa que nossa indústria faz é apagar as linhas
na areia quando o mundo tenta fazê-las mais profundas. [...] A todos que sonham
em usar a fantasia para contar histórias de coisas reais no mundo de hoje, você
pode.”
Essas
foram as palavras de Guillermo del Toro ao receber a estatueta do Oscar de
Melhor Filme por A Forma da Água, na 90º edição da premiação ocorrida em 2018.
Analisando
a trajetória cinematográfica deste diretor mexicano – aliás, que incrível safra
de bons diretores mexicanos vem arrastando as premiações pelo mundo: Alfonso Cuarón (Gravidade, Roma), Alejandro Iñárritu (Birdman, O Regresso) – podemos perceber que del Toro possui em
seu histórico uma forte veia para os gêneros de fantasia e horror, pelos quais
lhe fazem conhecido. Quatro de seus filmes serão analisados pensando as ideias pelas quais del Toro constrói seu panorama de realismo fantástico e como concebe a
relação que há entre os seres humanos e criaturas como monstros e figuras
fantasmagóricas em A Espinha do Diabo, O Labirinto do Fauno, A Colina
Escarlate e A Forma da Água. Nesta primeira parte, conheceremos um pouco do enredo dessas películas.
ALERTA DE SPOILER!
Se não desejar saber detalhes demais sobre os filmes, você pode assisti-los e em seguida, leia esse texto. Caso não se importe, só se joga na leitura!
ALERTA DE SPOILER!
Se não desejar saber detalhes demais sobre os filmes, você pode assisti-los e em seguida, leia esse texto. Caso não se importe, só se joga na leitura!
Lançado em 2001, A Espinha do Diabo
me parece seu filme mais poético dentre os selecionados, mas que não abre para
tantas interpretações ao final da sessão como ocorre com O Labirinto do
Fauno. Com uma estética simplista se comparada as outras produções
analisadas, a história gira em torno de Carlos (Fernando Tielve), um garoto que
é deixado em um orfanato onde uma bomba desligada está alojada no centro do
pátio, sinalizando a todo momento no filme a simbologia do período em que a
história se passa: a guerra civil espanhola (1936-1939). Acentuando o caráter
político da guerra que ocorria entre guerrilhas armadas de viés socialista
contra o exército fascista do General Franco, del Toro constitui um micro cosmo
no orfanato, atribuindo aos personagens que comandam o lugar um viés socialista,
os que guardam ouro em nome da famigerada causa progressista. É este ouro que
vai gerar toda a ganância de Jacinto (Eduardo Noriega), um homem que cresceu no
orfanato, mas que trabalha nele como zelador depois de adulto e que passa a
relacionar-se com a dona do recinto, dona Carmem (Marisa Paredes),
aproveitando-se disso para roubar as chaves dela e tentar abrir o bendito cofre
onde o “ouro da causa” está guardado. Até aqui, nenhum elemento mais
extraordinário que uma bomba encravada no chão. Pois bem, um fantasma de nome
Santi (Junio Valverde), meus caros, invade este plot e passa a
atormentar o pobre menino Carlos. Tal fantasma, na verdade, é uma penumbra do
que ocorreu no orfanato e muito do que se espera de alguns personagens sofre
uma virada numa parte do filme por conta da presença deste fantasma, o que
torna o enredo muito interessante nesse sentido.
Em 2006, na cerimônia do Oscar, O
Labirinto do Fauno recebeu as estatuetas de Melhor Direção de Arte, Melhor
Fotografia e Melhor Maquiagem. O filme de del Toro, com aclamação da crítica e
sucesso de público, abocanhou vários prêmios pelo mundo e consagrou o diretor,
que até foi cogitado para dirigir a trilogia O Hobbit tempos depois.
Nesse longa espanhol-mexicano, assim como A Espinha do Diabo, vem à tona
mais uma criança, mas não um garoto apaixonado por quadrinhos, como Carlos.
A
órfã da vez é Ofélia (Ivana Baquero), uma jovem que mesmo adentrando a
adolescência não deixa de ler seus contos de fadas, fator de repreensão pela
sua mãe, que morre no parto de um novo filho, fruto de um relacionamento com o
general Vidal (Sergi López). A história, mais uma vez, é ambientada na Espanha em
um período pós guerra civil. É para o acampamento deste general, criado para
combater as guerrilhas armadas escondidas nas florestas, que Ofélia e sua mãe
Carmem (Ariadna Gil), já grávida, se mudam. O pai de Ofélia, um costureiro, foi
morto na guerra civil e o relacionamento posterior de sua mãe com este general
levará a jovem para um novo micro cosmo de autoritarismo e repressão. No acampamento
militar, Carmem espera seu filho próximo do pai, o que justifica a vinda das
duas para tal lugar. Em meio a perseguições políticas e espiões da guerrilha
armada, como a empregada Mercedes (Maribel Verdú) e o médico que cuida de
Carmem (Alex Ângulo), Ofélia encontra refúgio em uma velha construção próxima
do acampamento, um labirinto onde se abriga em seu centro um encurvado Fauno
(Doug Jones) com “cheiro de terra”. Segundo o velho fauno, Ofélia é a
encarnação de uma princesa, que para voltar para seu reino prometido terá que
cumprir três tarefas. O plot da história desenvolve-se com as cenas de
repressão, perseguição e tortura do general Vidal contra seus oponentes, o que
revela a face cruel do totalitarismo espanhol encarado no longa como “a banalidade
do mal” – pegando o conceito da filósofa política especialista em
totalitarismo, Hannah Arendt -, uma frieza sem espantos diante de ações
hediondas, um arquétipo de vilão: impiedoso, cruel e insensível. As tentativas
de Ofélia em cumprir as tarefas que o Fauno lhe sugere revelam a outra face do
enredo. Diferente de A Espinha do Diabo, aqui a fantasia não está
diretamente atrelada ao real. São dois âmbitos (a repressão do acampamento
militar e a magia do Fauno) que não se conectam se não for pela intervenção de
Ofélia, o que instiga a pensar se aquele fauno e os objetos que ele entrega à
garota são de fato, verídicos. O mesmo não ocorre em A Espinha do Diabo,
onde o horror propagado pelo fantasma se dilui em conselhos dele e este mesmo
fantasminha ainda ajudará os pobres órfãos a se livrar das enrascadas em que
vão se ver obrigados a encarar.
Dando um belo salto temporal, entre
ficções científicas de robôs gigantes, desenhos animados e até quadrinhos, del
Toro retorna ao horror clássico e gótico com o filme A Colina Escarlate em
2015, filme que não se destacou em premiações como os anteriores
citados. Aqui, a imagem do fantasma muito se assemelha ao que ele empregou em A
Espinha do Diabo: nada mais do que o reflexo das ações dos vivos
no passado, uma mensagem ainda restante com algo pendente – vingança,
conselhos. Neste plot, nossa protagonista é uma jovem americana de nome
Edith (Mia Wasikowska) aparentada dos seus dezoito anos, fissurada pelo gênero
a qual del Toro constitui sua ideia de realismo fantástico no filme: o clássico
do século XIX, tendo como exemplo citado na película Frankenstein, de Mary
Shelley. Essa garota de mente aberta para a época, que sonha em ser escritora
de horror, conhece um misterioso homem, Thomas Sharpe (Tom Hiddleston) por quem
se apaixona e se casam. A menina é levada para a Inglaterra, onde ela passa a
conviver com seu marido e a irmã dele, Lady Lucille (Jessica Chastain) na mesma
mansão, um lugar tenebroso no alto de uma colina e que está afundando pelo
barro vermelho que constitui o terreno do local, porém expressado por um horror
magnificamente arquitetado pela direção de arte do filme para se tornar sublime
e fascinante, com uma cartela de cores que alterna entre tons frios – o verde –
e tons quentes – pastéis e vermelho – trazendo obscuridade em muitas cenas e
conforto visual em outras, nos permitindo conduzir-se pelo medo e anestesia de
fascínio visual. A beleza do figurino, da fotografia e da atuação de Jessica
Chastain, a vilã da história, seguindo a linha clássica, daquelas de novela
mexicana com uma dose de subversão aos princípios latinos do catolicismo, mais
parece uma tragédia grega; todo o resto é uma linearidade previsível. Os fantasmas (dois deles interpretados por Doug
Jones) aqui atormentam a jovem Edith em todos os cômodos da grande mansão e se
revelam mais vítimas do que o reflexo de um horror ativo por parte deles.
Em 2017, del Toro lança sua mais nova película: A Forma da Água. Um plot ambientado em
esferas muito diferentes dos outros filmes citados. Afinal, se A Espinha do
Diabo e O labirinto do Fauno são conduzidos por um mesmo eixo
temático histórico: a guerra civil espanhola; A Colina Escarlate, muito
me parece ser o final do século XIX, enquanto que A Forma da Água está
mergulhada no turbilhão ideológico e político da década de 1960 em plena Guerra
Fria. Sim, meus caros, as pérolas de del Toro são belas amostras de conflitos
entre a dicotomia que o mundo não se cansa de reproduzir: os que conservam e os
que querem mudança, claro, em seus devidos contextos históricos, outra marca
registrada do cineasta. O plot desta história chega até ser cómico,
dependendo da maneira como você conta. “É a história de uma muda que se
apaixona por um peixe”, falou uma amiga minha. O fato da história girar em
torno da relação de amor entre a faxineira imigrante muda Eliza (Sally Hawkins)
e um monstro aquático (Doug Jones) que é descoberto nos confins da Amazônia e
que os militares americanos querem usar como arma de guerra foi motivo de
chacota até pelo apresentador do Oscar, Jimmy Kimmel.
A
grande questão é que esse longa traz à tona um enredo que pincela um contexto
muito bem representado para a época escolhida. A efervescente década de 1960
foi vivida com intensidade, tendo destaque o ano de 1968, para muitos, o ano que
nunca acabou. Isso porque grande parte do que vemos de mais intenso em
movimentos negro, feminista, ambiental, LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Transgêneros, Travestis, Queers, Intersexuais) nasceu, tomou forma e tremenda
repercussão nessa época. Em A Forma da Água, os roteiristas Guillermo
del Toro e Vanessa Taylor, tiveram um cuidado de seguir com outra marca
registrada deste cineasta: a pluralidade de personagens e o desenvolvimento
representativo de figuras coadjuvantes na história. A forma da Água faz
isso com tremenda excelência. Há o personagem homossexual (Giles - Richard
Jenkins), a preta (Dalila - Octavia Spencer) que sofre com a postura machista
do marido, a deficiente (Eliza - Sally Hawkins). No meio dessa mistura, ainda encontramos o vilão, Coronel Richard Strickland (Michael Shannon),
típico representante da linha American Way of Life, com uma casa
de alta classe média, uma esposa que mais parece ter se formado no colégio
conservador de Welleston, do filme O Sorriso de Monalisa (2003), filhinhos
que assistem Happy Days, Cadilac na garagem e ainda não seria surpresa se víssemos uma vizinhança parecida com a galera racista do filme Histórias Cruzadas (2011). Mais uma vez, um vilão
cheio de posturas esperadas e nada diferente do que já vimos nos outros filmes
de del Toro. Sim, por mais que esses vilões apresentem uma sensibilidade com
constituições familiares – Jacinto se sensibiliza com fotos de sua mãe (mais
sensível dos vilões e melhor desenvolvido), Capitão Vidal queria ser tão
honrado quanto o pai, a irmã de Thomas era apaixonada e obsessiva pelo irmão e
o vilão de A Forma da Água tinha seu pai como chefe, recebendo
constantes cobranças – eles ainda são profundamente arraigados em um modelo
clássico antagônico, como também se constitui grande parte da obra de del Toro.
Algumas
figuras pertinentes sempre parecem fazer parte das histórias deste cineasta. A
figura do médico aparece em todas as quatro histórias e sempre ocupando papel
importante, construindo-se de uma personalidade cética, titulando-se sempre
como coadjuvante. Em dois desses filmes, o médico ocupa um duplo papel: o de
espião. Em O Labirinto do fauno, o médico, assim como Mercedes, é um
infiltrado da guerrilha armada. Em A Forma da Água, o médico veterinário
que cuida do monstro aquático é um espião soviético. Dualidades são a marca
registrada de del Toro para pontuar toda sua concepção imbricada de real e
fantástico: os dois se misturam e se completam, sempre tomados de protagonistas
embebidos em muitos livros e histórias, pessoas que já tem a mente fértil o
bastante para constituir algo fora do eixo. Isso só não acontece em A Forma
da Água, em que a problemática da guerra fria e do elemento monstruoso que
conduz o enredo são tomados pelos olhos de uma faxineira imigrante.
Mas
afinal, o que há de particular entre o que consideramos humano e fantástico em
cada um desses filmes? Veremos na segunda parte dessa análise...
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